domingo, 28 de junho de 2015

hombres buenos

"Hombres buenos" é ao mesmo tempo a invenção de uma história de viagem (a de dois sujeitos, membros fictícios da Real Academia Española, no final do século XVIII) e a narrativa de uma aventura empreendida por amor aos livros, em busca de idéias, conceitos e palavras que só se encontram nos livros. A história tem lá seu encanto: tenta dar conta de como a RAE conseguiu os vinte e oito volumes in folio da primeira edição da Encyclopédie francesa, editada por Diderot e D'Alembert entre 1751 e 1772, um dos maiores símbolos do Iluminismo. Arturo Pérez-Reverte (membro da RAE desde 2003) descobre os volumes na biblioteca de sua Academia e começa a imaginar como uma monarquia conservadora como a Espanhola conseguiu adquiri-los. Ele constrói um romance que dialoga com o leitor. Ao mesmo tempo que a narrativa avança ele intercala reflexões sobre o processo de construção do romance, conta os procedimentos que utiliza para coletar dados, descreve as consultas que faz nas atas da academia onde há menções sobre a compra dos volumes, reúne-se com especialistas e conversa com seus colegas acadêmicos (os reais, não os dois que inventou), fala da viagem que fez a Paris (mais ou menos pelo mesmo trajeto utilizado por seus dois personagens/confrades do século XVIII). A história é movimentada. Dois dos acadêmicos da RAE são incumbidos de viajarem a Paris e adquirir os volumes. Um é Hermógenes Molina, bibliotecário da academia, um discreto especialista em textos latinos, o outro é Pedro Zárate y Queralt, almirante aposentado, experimentado em batalhas e autor de um dicionário de marinharia. A compra da Encyclopédie é controversa. Uma parte dos acadêmicos não se sente entusiasmada com as idéias progressistas ali inscritas. Dois deles (um jornalista reacionário ligado a igreja e um escritor que no fundo plagia discretamente os franceses e que teme ser desmascarado) decidem contratar um sicário para impedir que a compra se efetive. O leitor acompanha como, de Madrid a Paris, os dois acadêmicos experimentam os sucessos típicos de um romance de aventuras: emboscadas em locais isolados, conversas furtivas em estalagens mal iluminadas, encontros amorosos clandestinos, roubos e escaramuças, a eterna luta do bem contra o mal. Temos até direito a acompanhar um duelo numa manhã encoberta por neblina num frondoso parque francês. Com a ajuda de um abade convertido à causa revolucionária (a revolução francesa está prestes a eclodir) passam os dias em Paris em livrarias e sebos tentando encontrar uma edição completa dos volumes, mas têm tempo também para irem aos cafés, salões mundanos e encontrarem-se com filósofos e intelectuais daquele tempo (são citados Choderlos de Laclos, Leclerce de Buffon, Restif de la Bretonne, o próprio D'Alembert e Benjamim Franklin - que tratava ali de conseguir apoio francês na guerra contra os ingleses). Sabemos que a empreitada terá um destino feliz, afinal os livros estão fisicamente na biblioteca da RAE, portanto alguém os trouxe com segurança. Caso o livro descrevesse apenas as peripécias pelas quais os dois acadêmicos passaram para comprar os volumes o livro não teria muita graça. Porém um leitor mais exigente encontra estofo maior nas boas reflexões de Pérez-Reverte sobre o mundo contemporâneo (que de alguma forma afasta-se cada vez mais da razão e valora menos o conhecimento neste conturbado início de século XXI). O objetivo do livro parece mesmo ser mesmo discutir como hoje, com todo o conhecimento disponível nas infinitas enciclopédias digitais de que dispomos, é possível haver tanta desinteligência, intolerância, violência e temor sobre o futuro imediato. Pérez-Reverte fala sobretudo sobre como dois homens de índole muito diversa, apenas colegas profissionais, alcançam tornar-se amigos de verdade, amigos para sempre, sem hipocrisias ou convenções. Ele alcança bons efeitos cômicos quando faz uso das polêmicas idéias de seus confrades acadêmicos Javier Marías e Francisco Rico (o respeitado especialista em literatura do século de ouro espanhol e autor de uma edição comentada do Quijote de Cervantes). E, por fim, descreve com precisão os caminhos de Paris e de Madrid, principalmente aqueles do "Barrio de las letras", onde todos que gostam de literatura espanhola inevitavelmente vão como numa peregrinação quando estão na cidade. Trata-se assim de um livro sobre a amizade e a paixão pelos livros, pelas palavras (num mundo progressivamente individualista e dominado pela imagem). Apesar de não ser o melhor livro dele que já li tem lá seu charme. Lembrei-me também que quando um sujeito se deixa viajar completamente, imerge numa experiência sem amarras, ao voltar para casa encontra poucos vestígios de si mesmo. A mobília parece provocar estranhamento; o nome grafado na correspondência que se acumulou parece ter sido entregue por engano; a fisionomia dos amigos evoca outras pessoas; os sons e as vozes sugerem outro ritmo, outros códigos, lembranças de um tempo distante. Eventualmente o hábito, fiel camareiro, faz o sujeito recuperar sua velha e conhecida persona, o devolve à cidade e ao mundo, com suas virtudes e defeitos de sempre. Entretanto ele sabe (e talvez nunca compartilhe com ninguém) que o homem que voltou é um outro, um duplo, está mudado. Talvez mais impactante que a experiência real das viagens e do assombro que é conhecer gente e paisagem seja a experiência silente que temos com os livros, pois eles sempre alcançam nos metamorfosear um bocado. Ao abrirmos cada livro perguntamos: para onde aponta esta jornada? Wither?
[início: 15/05/2015 - 02/06/2015]
"Hombres buenos", Arturo Pérez-ReverteBarcelona: Alfaguara / Penguin Random House Groupo Editorial, 1a. edição (2015), capa-dura, 16x24,5 cm., 582 págs., ISBN: 978-84-204-0324-3

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