quarta-feira, 24 de junho de 2015

un pedigrí

Esse é o mais autobiográfico dos romances de Patrick Modiano que já li. Desta vez não há um narrador que como nos demais livros dele camufle sua existência como um "Modiano" ad-hoc, um sujeito que eventualmente tem o mesmo nome que o autor, nasceu no mesmo dia, ano e lugar que ele e que se preste a viver as aventuras ficcionais que brotaram de sua vida e de sua memória. "Un pedigrí" explicita os procedimentos obsessivos que estão presentes em todos os demais livros dele que já li. Mas há uma diferença fundamental, que talvez justifique a mudança de tom. Desta vez Modiano fala de seu pai objetivamente, não mais como uma personagem/pessoa distante, de cujos sucessos sabe-se pouco. Aos sessenta anos, em 2005, entende que é hora de lembrar quem era mesmo esse sujeito irascível, egoísta e obscuro, que por acaso foi seu pai. O narrador afirma que nunca pode de fato fazer confidências ou pedir ajuda ao pai. Escrever automaticamente, quase sem revisar, sobretudo sem abusar de desvios pela ficção ao contar sua história era a única forma de avançar o livro. Afirma que a memória de seu pai (e da tumultuada convivência entre ambos) poderia desaparecer se ele não a fixasse desta forma. O livro é curto. Cada capítulo dá conta de um período também curto, um par de anos, não mais. Primeiro ele faz uma espécie de catálogo dos parentes e amigos de seu pai. Essas pessoas aparecem várias vezes no demais livros dele, metamorfoseados em personagens, camuflados sob pseudônimos. O pai é um sujeito que usa todo o tipo de expedientes para fazer negócios, sempre no limite da legalidade, sempre solitário, sempre priorizando a ação em detrimento da reflexão e da calma. Com esse catálogo Modiano apresenta o que seria seu pedigree (ou a falta dele), como se fosse mesmo um filho enjeitado. Num capítulo ele fala de sua rotina por colégios internos, amizades com gente mais velha, a ausência sistemática dos pais (a mãe, atriz, tampouco convive com ele). Noutro capítulo ele narra o período que seria equivalente a nosso nível médio, numa província do interior francês, onde o adolescente fantasia qual seria seu futuro, lê sistematicamente, muito, até alcançar ser expulso de uma vez por todas da escola. Segundo ele a França daquela época (início dos anos 1960) poderia ser resumida como o lugar onde todos esperavam emigrar para Paris (como se Paris fosse um país diferente, distante, mágico, uma nova Citera). Seus pais já se separaram, ele vive com a mãe com muitas limitações financeiras, sendo chantageado pelo pai para ingressar numa universidade obscura em Bordeaux. Depois o pai casa-se novamente, planeja emigrar para a Suíça, mas antes pretende enquadrar o filho, fazendo-o ingressar na carreira militar. Os dois só se falam através de cartas (terríveis, algumas transcritas no livro) e ficam anos sem se falar. Quando o narrador está perto de publicar seu primeiro livro, o pai morre. Pela primeira vez o narrador não se sente mais ameaçado, não se obriga a ficar em guarda, pronto para um ataque. Fim. Do livro, da sessão, da análise, da terapia.
[início: 25/05/2015 - fim: 27/05/2015]
"Un pedigrí", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #684), 1a. edição (2007, brochura 14x22 cm., 129 págs., ISBN: 978-84-339-7465-5 [edição original: Un pedigree (Paris: éditions Gallimard) 2005]

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