sábado, 30 de junho de 2018

trio pagão

Em "Trio pagão" Sérgio Medeiros enfeixa três propostas poéticas distintas e  complementares: "Esculturas de caligrafias", "Enrique Flor, o novo" e "[O] Rio perdido". Cada proposta do tríptico poético é acompanhada por uma pequena nota introdutória do autor, onde ele detalha a gênese de suas invenções, e uma apresentação, cada uma delas assinadas, respectivamente, por Gonzalo Aguilar, eu mesmo e Odile Cisneiros. "Esculturas de caligrafias" é um conjunto de vinte e três poemas visuais, desenhos como aquele que é reproduzido na capa do livro, nos quais a mão do poeta emula garatujas similares aquelas que uma vez ele viu um índio xavante produzir no final dos anos 1980. Esse índio, Jerônimo Tsawé, respeitado pelos seus, tornou-se uma espécie de guru do autor e é citado em outros trabalhos seus. Essa parte do livro se encerra com a reprodução de um artigo de Sérgio Medeiros, publicado originalmente em um jornal paulista, em 2011, onde ele explica as circunstâncias dos encontros que teve com aquele seu mestre xavante e traça paralelos entre os sonhos de Tsawé e as experiências da Alice de Lewis Carroll. Como fiz a apresentação da segunda proposta, "Enrique Flor, o novo", reproduzo-a aqui para melhor esclarecer o que entendi dela: “Enrique Flor”, o poema, é uma proposta refinada, sutil, onde inspiração e referências eruditas se plasmam. Nele encontramos novas aventuras de Enrique Flor e também algo sobre a evolução de sua música vegetal, de sua arte vegetal. Mas quem é afinal Enrique Flor? Quando lemos o “Ulysses”, de James Joyce, encontramos primeiro Bloom, depois Flower e depois Flor. Leopold Bloom e Henry Flower aparecem quase juntos no quarto episódio do livro, no início da manhã, e são na verdade a mesma pessoa, pois Bloom só vive suas breves metamorfoses como Flower quando troca cartas e flerta com uma amiga virtual. Já Enrique Flor o leitor só conhecerá brevemente no décimo segundo episódio, já no final da tarde, após muitos e variados sucessos de Bloom. Pois esse Enrique Flor é citado como o músico que tocou órgão com notória habilidade em uma missa de núpcias, no dia anterior ao dia de Bloom, o Bloomsday. As cenas deste décimo segundo episódio do “Ulysses” são paródicas, tudo é exagerado, hiperbólico, retórico, típico de conversas irrelevantes e risíveis de bar (os personagens estão em um pub, o “Barney Kiernan”). A curta passagem em que encontramos Enrique Flor, parte de um relato sobre um casamento arbóreo, contrapõe, à sua música de inspiração vegetal, o desmatamento da Irlanda provocado pelos invasores ingleses. Em 2012, no “Totens”, também editado pela Iluminuras, Sergio Medeiros imaginou uma deliciosa biografia desse músico português radicado em Dublin e citado por James Joyce, contando-nos algo daquelas notórias habilidades musicais que ele praticava. Medeiros recria o espírito de sua obra musical e composições, fala de seus concertos, de suas preocupações ecológicas e ambientais. Preocupações que o fizeram sair de Dublin, voltar a sua querida e igualmente desmatada pátria, Portugal, não antes de uma curiosa visita às selvas da América, onde deixa um discípulo brasileiro, que posteriormente adotaria seu nome, mas multiplicando-o, quando passa a chamar-se Henrique Flores. Nesse novo livro, que inclui um apêndice visual, “O olhar das plantas”, formado por quinze pranchas em branco onde é registrado o surreal ato botânico de plantas fitarem poemas não escritos, telas em branco. Enfim. Sergio Medeiros é um poeta que experimenta o mundo, sempre curioso e com método. Um poeta antenado, que parece não ter medo de testar as possibilidades de seu ofício, de criar sua própria vanguarda, de provocar – concretamente – o leitor. Ele procura entendimento e expressão na linguagem, tanto a linguagem que pode ser vocalizada e é mais cerebral, construída, quanto outra, que parece brotar diretamente do mundo sensível a nossa volta, a linguagem do mundo físico, natural, o mundo das formas, sons e cores, o mundo material que se irradia e preenche o espaço, o mundo das árvores e das flores, dos elementos. Um humor, joyceano (na falta de outra palavra), preenche o livro, conduz o poema. Nele o leitor encontra o novo Enrique Flor em Dublin, ora metamorfoseado nas festividades do Bloomsday, talvez o mais sofisticado “Cosplay” de nossos tempos, ora em chamas, junto com as árvores do incêndio de Pedrógão Grande, em Portugal. O poema alterna episódios que tratam da nova encarnação de Enrique Flor e outros que marcam as horas do dia, horas que funcionam como estásimos corais de uma tragédia grega e cantam as deambulações de uma família de turistas num Bloomsday. O Enrique Flor que refloresta o mundo, que distribui sementes, sementes que brotam pela cidade, bloomzeiros em flor, será sacrificado em Portugal, num sonho, como aquele de Molly Bloom, no final de Ulysses. Após incêndios a vegetação devastada naturalmente se recupera. O solo, fertilizado pelas cinzas, fará brotar novos botões e ramos nas árvores calcinadas, fará eclodir as sementes para repovoar a terra. Não é improvável que outro Enrique Flor desabroche no futuro no jardim poético de Sergio Medeiros. Logo veremos. A terceira e última proposta, "[O] Rio perdido", é dito ser uma prosopopéia pagã, ou seja, é um poema (ou peça de teatro - o próprio autor explicita não ser fácil distinguir entre os gêneros) em que sentimentos humanos são como que vocalizados por seres inanimados. Medeiros dá voz a uma rocha do Rio perdido, um rio que corre pelo Mato Grosso do Sul, no Parque Nacional da Serra da Bodoquena. Essa rocha fala da ação do tempo, desde quando era ígnea, depois retangular, lentamente esculpida pela ação das águas e finalmente grafitada por algum vivente. O "marulho" que se ouve quando nos aproximamos das águas é a voz desta pedra. O grafite na rocha também é uma encarnação de uma ninfa das águas, Dona Primitiva. O poema conversa obviamente com o Finnegans Wake de Joyce, com Anna Livia Plurabelle, a personificação do Rio Liffey que corta Dublin. Ao contrário do que disse um dia Proust sobre o mar ("La Mer  ne  porte  pas  comme  la  terre  les  traces  des  travaux des  hommes  et  de  la  vie  humaine"), os vestígios dos trabalhos dos homens não apenas deixam traços como destroem tudo inexoravelmente, inclusive os rios, como o Rio perdido e inclusive a paciência de suas ninfas, como Dona Primitiva. Esse registro já ficou enorme, portanto pouco importa se eu acrescentar umas linhas. Semanas atrás, em São Paulo, por uma coincidência dos diabos comprei esse livro para presentear Heloísa, mulher de um grande amigo, que descobri que Claudia, irmã da Heloísa, conhecia bem don Sérgio Medeiros e sua mulher, Dirce. Essa aldeia é mesmo muito pequena. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1276 (poesia #92) 
[início: 25/04/2018 - fim: 28/06/2018]
"Trio pagão", Sérgio Medeiros, Florianópolis: Editora Iluminuras,1a. edição (2018), brochura 13,5x19 cm., 216 págs., ISBN: 978-85-7321-576-2

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