segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

o preto que falava iídiche

Por acaso descobrir e ler "O preto que falava iídiche" foi umas das grandes alegrias que tive em 2018 (já falei disto quando registrei aqui no final do ano passado algo sobre seu bom livro de contos, "Nas águas desta baía há muito tempo"). Pois "O preto que falava iídiche" é um romance especial, bastante inventivo e movimentado. Nei Lopes criou um personagem interessante, Lindonor, o Nozinho da Gamboa, uma espécie de Macunaima carioca, de quem se conta cousas desde seu nascimento até a espécie de transfiguração mítica que experimentará na velhice, nos confins da Africa (se é que ele não morreu de morte matada em algum momento, bem antes desta velhice). O narrador é um advogado carioca, que tornou-se tutor do jovem negro sem pai nem mãe, para impedir que ele fosse enviado ao cárcere. Esse advogado conta causos da vida de Nozinho, quase sempre em um bar, ou também ouve historias fabulosas de terceiros sobre seu protegido. Essas historias se confundem com histórias reais da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil no inicio do século passado: a convivência de negros e judeus no centro da cidade, que compartlham o mesmo tipo de marginalização e preconceito, a ascensão da zona do meretrício, a geografia da cidade, a reinvenção do candomblé, a invenção da bateria, do samba, fala sobre o teatro de revistas, o carnaval, a invenção dos sambas-enredo, a destruição do morro do Castelo, a história dos Orixás, a marcha da coluna Prestes, sobre o tráfico negreiro, a especulação imobiliária e expansão da cidade, a semana de arte moderna paulista, a história dos negros nos EUA, a historia do futebol e dos times cariocas, a rivalidade entre Rio de Janeiro e São Paulo, as histórias de negros, muçulmanos e falashas judeus na Africa. Essa miriade de informações gravita o jovem Nozinho, que posto a trabalhar como aprendiz em um armarinho de um proprietário judeu na praça Onze carioca, apaixona-se por Raquel, filha do dono, que acaba sendo exilada na distante Porto Alegre gaúcha, enquanto ele foge para o Irajá carioca, obrigando o herói do livro passar sua vida perseguindo o sonho de reencontrá-la (e até virar argumento em uma peca teatral que teria sido escrita pelo abolicionista José do Patrocínio). Nesta busca ele deambula por lugares onde os judeus brasileiros floresceram: Porto Alegre, São Paulo, Bahia, mas me parece que é a história dos negros na sociedade brasileira que se está sendo melhor contada. De qualquer forma a história que realmente importa é a da busca de um amor perdido. Apesar das muitas citações eruditas a leitura é leve, o texto flui como poucos, ri-se das aventuras do sujeito. Há bons personagens secundários, uns velhinhos divertidos. Adorei a encrenca que Nozinho provoca entre o sofisticado paulista Décio de Almeida Prado e uma importante mãe de santo carioca, Mãe Mocinha. No final do livro se alcança um tom de fábula, um amigo de Nozinho argumenta, num transe mítico, que esse tornou-se uma espécie de imperador da Africa, unindo finalmente suas raízes negras e judaicas, servindo de exemplo, resgatando a importância e valor de todo o povo negro. O narrador confessa que escreveu um livro sobre os sucessos de Nozinho, que reencontrou próspero, protegido de Getulio Vargas nos tempos do Estado Novo, autor velado da Lei de Segurança Nacional, mas esse livro foi rejeitado por várias editoras por um pretenso antissemitismo. Que romance bom. Vou procurar mais cousas deste Nei Lopes. Vale!
Registro #1359 (romance #354)
[início 26/09/2018 - fim: 29/09/2018]
"O preto que falava iídiche", Nei Lopes, Rio de Janeiro: Editora Record, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 255 págs., ISBN: 978-85-01-11325-2

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