domingo, 29 de setembro de 2019

uma confissão póstuma

Na literatura holandesa meu farol sempre será Cees Nooteboom, autor que ensinou-me muito sobre a arte de olhar as cousas, a observar além das aparências, a aprender tanto com a realidade objetiva quanto com a fantasia, com a memória. Entretanto, nos últimos meses li vários livros de outros autores da Holanda, cousas traduzidas por Daniel Dago, jovem paulista. Esse "Uma confissão póstuma" é de 1894, e há quem o compare com o "Memórias do subsolo", de Dostoiévski. De fato é um bom romance confessional, um romance que gravita os processos psicológicos de um sujeito que desnuda suas misérias ao leitor, sem esperar perdão ou remissão divina, talvez apenas por cansaço ou absoluta amoralidade, misantropia. Willen Termeer, o protagonista da história de Emants, é um adulto ainda jovem que confessa, além de um crime, sua inapetência para a vida em sociedade, sua inadequação para o convívio humano, sua autocomiseração. Assim como tantos personagens da literatura de qualquer tempo ou lugar (e tantos indivíduos de carne e osso, gente real, conhecidos nossos), Termeer parece acreditar que a felicidade existe, ou, ao menos, seria possível alcança-la em seus termos, que são bizarros, inaceitáveis, para qualquer pessoa intelectualmente sadia. É um livro fácil de ler. Todavia, talvez, como sempre fazemos, arrogantes viventes deste nosso século XXI, sobre as coisas escritas, produzidas ou imaginadas há tanto tempo, mas não exageradamente distante de nossos dias, esses exemplos literários de ações e comportamentos psicológicos tristes, patéticos ou condenáveis, que recebemos com um esgar e sarcasmo, apenas sirvam para nos absolver preventivamente das misérias modernas, contemporâneas, de nossos defeitos ainda invisíveis para nós mesmos, seja como indivíduos ou como grupo social. "Nada do que é humano me é estranho", já nos ensinou Terêncio, há 2500 anos, mas as variadas formas de amar que inventamos sempre serão inevitavelmente estranhas demais. Bom livro. Haverá mais holandeses por aqui, claro. Vale!
Registro  #1452 (romance #366)
[início: 16/07/2019 - fim: 19/07/2019]
"Uma confissão póstuma", Marcellus Emants, tradução de Daniel Dago, Porto Alegre: editora Zouk, 1a. edição (2019), brochura 16x23 cm., 236 págs., ISBN: 978-85-8049-083-1 [edição original: "Een nagelaten bekentenis" (Amsterdan: Van Holkena & Warendorf) 1894]

3 comentários:

Paulo Rafael disse...

Guina Medici:

Estava lendo "O Corvo e suas traduções", Ivo Barroso, e vim aqui procurar algo de Poe. Quase sempre faço isso, o livro que estiver lendo, venho procurar algum comentário aqui nessa riquíssima biblioteca. Curiosamente, encontrei diversas postagens em que você cita Poe, mas nenhuma entrada direta para ele. Abração e obrigado por compartilhar todos esses tesouros.

Aguinaldo Medici Severino disse...

Paulo meu caro. Quando li tua postagem até achei que havia colocado um registro no blog sobre esse livro que citastes: "O corvo e suas traduções". Não sei como ele se perdeu, pois li há uns poucos anos. Houve uma época em que eu tive a pretensão de resenhar tudo que li antes de 01/01/2007, quando comecei o Livros que eu li, mas esta ideia morreu no ninho. Li vários livros do Poe quando era adolescente em São Bernardo, e depois estudante em São Paulo. Os livros dele estão em minha biblioteca, esquecidos e talvez amargurados de nunca serem mais consultados. É dura a existência dos livros, sobretudo neste tonto país. Quem sabe um dia, após minha inevitável morte, meus livros tenham sorte e sejam soltos pela Natália ou pela Helga, permitindo que eles reencontrem leitores por aí. Abração.

Aguinaldo Medici Severino disse...

E grato pelas palavras gentis. Saber que ao menos um pouco do que faço interessa alguém de longe (sobretudo no teu caso) faz à alma um grande bem. Abraços e boas leituras. Tudo de bom.