terça-feira, 1 de outubro de 2019

fausto tropical

Se o sujeito tem alguma familiaridade com literatura provavelmente conhece a lenda do doutor Fausto, já recriada tantas vezes (de Marlowe a Goethe, de Thomas Mann a Fernando Pessoa, de Puchkin a Murnau, dentre tantos outros). A história foi inventada e/ou citada em uma miríade de mídias, formas e contextos da cultura, tanto em abordagens eruditas quanto populares. Sidney Garambone, jornalista  e escritor carioca, adapta a história a seu Rio de Janeiro fundamental, seu Rio de Janeiro contemporâneo. Victor Vaz, o protagonista da história, é um escritor esforçado, porém mediano, que ganha sua vida como funcionário de um sebo, que já perdeu amigos por incluir fatos da vida deles em suas histórias, que foi abandonado pela mulher, vê apenas episodicamente a filha ainda criança e frequenta puteiros bem modestos e fuleiros de Copacabana. A fórmula dos livros que tratam do mito "Fausto" é bem conhecida: um espectro se materializa e mesmo sem nunca se identificar como um diabo, oferece a um mortal algo impossível, algo que o indivíduo deseje acima de tudo. Feito o pacto, o sujeito normalmente se arrepende e sua alma, ou algo que o valha, é resgatado por deus (metamorfoseado em "unseen hook and invisible line", já nos ensinou Evelyn Waugh). Na versão de Garambone antes é seu diabo quem parece desejar algo impossível, algo que em suas palavras apenas de tempos em tempos alcança, que é alguma conversa qualificada com interlocutores que acompanhem suas reflexões filosóficas e questionamentos morais, indivíduos que possam conduzi-lo a entender melhor a espécie humana, sua grande e fadada ambição. Vaz e este personagem infernal conversam o tempo todo, sobre verdades e mentiras, sobre ressurreição e morte, sobre amizade e curiosidade intelectual, sobre aprendizado. É um diabo cansado esse o engendrado por Garambone, um diabo entediado, que talvez por ter frequentado pouco a América do Sul precisasse novamente do calor tropical do título. Gostei da história. Os elementos fantásticos necessários se encaixam bem na trama; há alguma sociologia selvagem, que ajuda o leitor a tentar aceitar a mitologia carioca; há também alguma filosofia selvagem que conduz o leitor por um emaranhado de conceitos e tradições religiosas; uma rica historiografia sobre o mito de Lúcifer e suas variantes infernais. Enfim, Garambone preparou-se bem para escrever seu livro, que realmente é bem escrito, oferece boas horas de entretenimento ao leitor. Há talvez algum excesso na nostalgia sobre um Rio de Janeiro que dificilmente existe ainda, mesmo fora dos livros e da memória afetiva das pessoas que lá nasceram ou vivem, como ele, Garambone. Por isto mesmo, caso fosse eu o editor de Garambone, pediria que ele fizesse seu diabo explicar algo sobre a cota realmente intolerável de desastres que assolam há décadas o Rio de Janeiro, mas aí, muito provavelmente, o livro abandonaria os limites da ficção, sempre tão modesta quando comparada ao surrealismo da realidade, pois para mim, parece sim que o diabo mora lá faz tempo. Bobagem minha. Nada disso atrapalha a narrativa deste Fausto tropical. Segue o baile. Vale! 
Registro #1453 (romance #367) 
[início 14/08/2018 - fim: 19/08/2018] 
"Fausto tropical", Sidney Garambone, Rio de Janeiro: 7Letras1a. edição (2019), brochura 15,5x23, 262 pág. ISBN: 978-85-421-0753-1

2 comentários:

Paulo Rafael disse...

Em Karamázov, há uma bela conversa entre Ivan e um diabo menor.

Gostei de "ficção, sempre tão modesta quando comparada ao surrealismo da realidade"

Aguinaldo Medici Severino disse...

tchê Paulo, grande abraço. Essa frase é uma variante de algo que li primeiro no Javier Marías, mas que ele reputa autoria à Karen Blixen / Isak Dinesen. abracão