sexta-feira, 16 de outubro de 2020

a balada do velho marinheiro

Desde março, quando subi para as terras altas de Itaara, isolando-me desta nossa já perene pandemia, tenho lido muito, única forma a meu alcance de encontrar um descanso na loucura. Li muito sobre a dor e a morte (Canetti, Coetzee, Cave, entre outros). Quando subi lembrei de levar meu volume  do "The rime of the ancient mariner", de Samuel Taylor Coleridge. É um poema estranho, que provoca no leitor uma experiência de sonho, vertigem e assombro. Sua história é uma forma de enfrentar morte e destino, fugir da destruição e da loucura. É um poema que a cada leitura fornece um detalhe que se furtou revelar nas leituras anteriores, que encanta continuamente o leitor. Nele acompanhamos o relato de um velho marinheiro, dirigido a um sujeito que ele aborda no início de uma festa de casamento, sujeito que se rende a narrativa como se estivesse hipnotizado. O marinheiro conta como ele e seus colegas rumam ao sul em um navio, até chegarem próximos ao gelo da Antártida. Presos em um denso nevoeiro, em algum momento parecem estar sendo guiados para o bom caminho por um Albatroz (símbolo da pureza e das virtudes cristãs), mas o marinheiro narrador conta como por impulso usou sua balestra e abateu o pássaro. A partir daí todos no navio passam a culpar o marinheiro/narrador pelo destino infausto deles, e passam a ser assombrados, disputados, atormentados por demônios, condenados à danação. Dois destes demônios disputam as almas dos marinheiros. O demônio "Morte" ganha a alma de todos, que se afogam no mar, menos a do marinheiro narrador, cuja alma é vencida pelo demônio "Vida-em-morte". Assim sendo, parcialmente redimido pelo lance de dados e o navio fantasma desaparecer num redemoinho, o velho marinheiro se salva, é resgatado por um eremita e seu filho, e alcança a terra firme. Todavia, sabe-se condenado a eternamente contar sua história, a cantar os vivos sobre seus pecados, a ensinar como o destino dos homens e da natureza estão conectados, a falar sobre os perigos decorrentes da soberba e dos atos impensados. Lembro da primeira vez que li este poema, meados dos anos 1990 (em uma tradução do grande Paulo Vizioli, e inspirado pelo ótimo Sexual Personae: Art & Decadence from Nefertiti to Emily Dickinson, da Camille Paglia, que falava maravilhas de Coleridge - ela gostava especialmente da vampira Geraldine, mas essa é outra história). Esse belo volume da Ateliê inclui também a versão original em inglês; um longo ensaio do tradutor, Alípio Correia de Franca Neto; uma curta apresentação assinada por Alfredo Bosi; e o famoso fragmento Kubla Khan (também de Coleridge), que tem uma história de lenda. Diz essa lenda que Coleridge, estimulado por ópio, sonhou um longo poema, mas ao tentar transcrevê-lo, na manhã seguinte, foi interrompido por uma pessoa (um sujeito de Porlock) e com isso esqueceu as linhas seguintes daquilo que havia sonhado/imaginado. Coleridge, estimulado por amigos, só publicou este fragmento vinte anos após sua composição. O volume da Ateliê inclui também um poema de Jemery Reed (A pessoa de Porlock), em que se conta uma versão ligeiramente diferente desta história de inspiração e perda. Belas e terríveis histórias Coleridge nos legou. Mas temos todos que seguir nossas Vida-em-morte particulares, neste estúpido século XXI, neste ano besta de pandemia. Após ouvir a balada do velho marinheiro, na manhã seguinte, o convidado da festa de casamento, atordoado, desamparado, já um homem mais triste e mais sábio, parece ter ressuscitado. Boa sorte a todos que ouvirem baladas de velhos marinheiros, ai de nós. Vale!
Registro #1580 (poesia #134)
[início: 17/03/2020 - fim: 29/09/2020]
"A balada do velho marinheiro", Samuel Taylor Coleridge, tradução de Alípio Correia de Franca Neto, Cotia: Ateliê Editorial, 1a. edição (2005), capa-dura 20x27 cm, 240 págs. ISBN: 85-7480-273-5 [edição original: The rime of the ancient mariner, 1797; Kubla Kahn, 1816]

2 comentários:

Ronai disse...

Esse retiro nas terras altas de Itaara, esses meses de leituras em pandemia, fizeram seu efeito. Um texto como esse me faz ver que tua escrita e tuas observações ficam cada vez mais agudas, diretas, pungentes. Gostei demais!

Aguinaldo Medici Severino disse...

Ronai meu querido. Grande abraço. Grato pelas palavras gentis. Esses meses fizeram todos a mudar alguma coisa na vida. Eu sempre fui um hedonista, confesso, mas a solidão de itaara ajuda um pouco. Inté.