quarta-feira, 7 de outubro de 2020

no coração do país

Desde fevereiro, quando fui a África do Sul, como já contei aqui, já havia pensado em reler livros do J.M. Coetzee. Após ter lido o bom "À espera dos bárbaros" li "No coração do país". É o segundo livro dele, foi publicado originalmente em 1977 e chegou a receber um prêmio em seu país. Não me pareceu tão impactante quanto outros livros dele que já li, como, por exemplo, "Desonra", "O mestre de Petersburgo" e "A vida dos animais". O livro é composto por 266 cenas, como se fosse uma longa peça de teatro. As cenas não estão organizadas cronologicamente e nem tudo pode ser real, verdadeiro (a propósito: poucas coisas são mais irritantes hoje em dia que essa obsessão de muitos escritores contemporâneos em tentar trazer a realidade para seus livros, tentando incorporar fatos terríveis do cotidiano e com isso poder defender suas pautas ideológicas, como em uma espécie de quixotismo, de heroísmo auto proclamado. Arre!). Mas continuando com o Coetzee. Talvez as 266 cenas sejam apenas produtos da imaginação da narradora, que descobriremos já perto do final do livro chamar-se Magda, filha de um velho bass (senhor de terras), no interior - quase no deserto - da África do Sul. O que acontece entre as cenas narradas por Magda cabe ao leitor imaginar, inventar. Magda parece o tempo todo flutuar em um mundo de sonho, irreal, fantasioso, criando esse mundo em seu quarto sem janelas, enlouquecida. A história envolve culpa, violência e degradação. A fazenda onde vivem pai e filha está claramente decadente, mesmo no início da história, quando a menina lembra da chegada da segunda mulher de seu pai (sua madrasta). Se ela teve irmãos e primos, mãe e madrasta, criados, professores e colegas de escola, saberemos que todos morreram ou abandonaram a fazenda, deixando-os sós, com apenas um velho casal de empregados negros, que logo também escapará daquela ruína. O relacionamento dela com o pai é mais que estranho. Há tensão sexual, ciúme e raiva entre eles. Quando criança, ela imaginou matar pai e madrasta, ao vê-los copulando. Em algum momento um jovem negro, Hendrick, é contratado para trabalhar na fazenda. Tempos depois ele se casa com Anna, uma garota muito jovem. Quando o pai de Magda passa a se relacionar com Anna, uma metáfora do despótico poder de um senhor de terras nos tempos de Apartheid na África do Sul, floresce novamente nela o ciúme (ou, antes, simplesmente a curiosidade sobre o mecanismo do sexo). Há uma brincadeira interessante do autor, que gostei muito, que envolve a passagem de aviões sobre a fazenda e as tentativas de Magda de interagir com estes aviões escrevendo poemas com pedras no chão do deserto. De resto prefiro não descrever aqui o que segue - factualmente ou não - na narrativa. O leitor sabe que desde o início o quão pouco confiável são as memórias e descrições de Magda. Enfim, o que resta ao leitor é apenas a sufocante sensação de impotência frente a violência e a passagem do tempo, frente ao novo e a nosso medo da morte, frente a finitude e aos mecanismos da escravidão. Vale! 
Registro #1577 (romance #389)
[início: 18/09/2020 - fim: 22/09/2020] 
"No coração do país", J.M. Coetzee, tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo, São Paulo: Editora Best Seller, 1a. edição (1997), brochura 14x21 cm., 180 págs., ISBN: 85-7123-583-X [edição original: In the Heart of the Country (Londres: Secker & Warburg) 1977]

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