sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

fugitiva

Sobre o encantamento que experimentei ao ler contos de Alice Munro pela primeira vez já registrei aqui, ao falar sobre "Felicidade demais". Tentarei desta vez não adjetivar muito essa curiosa (ops!) escritora. Javier Marías já nos ensinou que é a boa literatura que explica um povo e uma época (e não os documentários, os romances históricos, os filmes documentais, o realismo forçado da literatura ruim). Há uma crônica recente dele onde este argumento é apresentado. Alice Munro alcança apresentar ao leitor, claramente, sem retórica vazia ou malabarismos mentais, toda uma sociologia (de seus contemporâneos e de sua época) em poucos parágrafos. "Fugitiva" é a exemplo de "Felicidade demais" surpreendente e bom. São oito contos longos. Em todos são mulheres as protagonistas das narrativas. O controle do fluxo do tempo em suas histórias é total. Munro o acelera ou quase o congela, dependendo do efeito que espera ou precisa provocar no leitor. Há temas que se repetem: o estranhamento, a loucura silenciosa, os conflitos familiares, a velhice, o desdém discreto pela vida acadêmica, o acaso da vida e das escolhas. Três das histórias tratam de uma mesma mulher, mas se a cada vez ela desse nomes diferentes para os personagens, talvez não os associaríamos tão facilmente entre si. A estrutura destas três histórias lembra aquele conceito caro à Robert Graves, o da trindade das deusas (e das mulheres), no qual a deusa assume em fases distintas os aspectos de ninfa, mãe e anciã, subsequente e cumulativamente. Uma das histórias começa como um diário, algo secreto, pessoal, intransferível, mas depois passa a uma estrutura de tópicos, como num ensaio, como se estivéssemos (sim, nós, os leitores) assumindo o controle do diário de uma pessoa e o interpretando. Muito curioso. Nestes oito contos, bem mais que nos dez de "Felicidade demais", são quase palpáveis a violência ou antes, a crueldade, que homens e mulheres sabem viver e trocar entre si. O que ela nos oferece em suas narrativas é ouro fino. Haverá mais coisas dela por aqui, seguro que sim.
[início: 29/10/2013 - fim: 30/11/2013]
"Fugitiva", Alice Munro, tradução de Sérgio Flaksman, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2006), brochura 14x21 cm., 385 págs., ISBN: 978-85-359-0855-2 [edição original: Runaway (Toronto: McClelland & Stewart - Randon House) 2004]

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