Dois sujeitos se conhecem em uma festa. Um é escritor, holandês, tem 60 anos. O outro é alemão, artista plástico, tem um pouco mais que a metade dos anos do primeiro. Reconhecem uma afinidade estética e resolvem fazer um pacto. O jovem artista enviaria ao velho escritor seus desenhos e este escreveria, não sobre os desenhos, isso estava já pactuado, mas sobre aquilo que conversaram na festa: sobre a vida em uma ilha (Nooteboom vive os verões europeus na espanhola Menorca) e sobre a vida em um grande cidade (Max Neumann vive na frenética Berlin reunificada, tão cara a Nooteboom). O escritor não descreveria os desenhos, o artista plástico não ilustraria os poemas. Ao receber o pacote com os desenhos do artista o escritor os fixa em uma parede e os contempla. Depois disso, por semanas, segue uma lógica onírica, deixa-se levar pela impressão que aquele conjunto de desenhos produziu e procura na memória sua inspiração. Há uma mescla de ficção e realidade, mitologia e história, sonhos e invenção. A edição é bilingüe, holandês e espanhol. O tradutor (Fernando García de lá Banda) nos explica que os poemas em prosa originais lhe cobraram trabalho árduo. Encontramos construções difíceis, imagens poderosas, de uma beleza terrivel, um clima que alterna as eventuais alegrias do sonho e a crueldade dos fatos que lembramos, mas não queremos lembrar. Os temas são variados: a água, os deuses gregos, as viagens, a lembrança do pai, o contraste entre velhice e infância, a geografia das cidades. Os desenhos são terrosos, de um vermelho que se molha e perde o brilho. O que é retratado vê-se como máquinas, como homens e animais furiosos e como seres que experimentam metamorfoses. O lugar de uma obra de arte é todo lugar onde o homo sapiens sapiens está, mesmo nas páginas de um livro, mas eu gostaria de ver mais coisas de Max Neumann em grandes formatos. A capacidade, o poder e a força de Nooteboom em registrar as sutilezas das coisas, de sintetizar e oferecer ao leitor idéias e imagens que, distraídos, deixaríamos passar, é sempre algo que me surpreende. Num dos poemas em prosa encontramos: "O número de vidas em um corpo já velho é insuportável"; noutro "A transmigração da almas não acontece depois, mas sim durante a vida"; ou noutro ainda "O convalescente no hospital sorri e responde rápido: 'você é a última pessoa que verei antes de morrer' e, depois disso, nenhum dos dois volta a falar". Coisas assim não deixam o leitor indiferente. Lemos um livro assim como se compartilhássemos uma conversa instigante, mas também um sonho, seja o sonho sonhado durante uma chuva vermelha na Menorca de Nooteboom, seja uma invenção onírica e potente de Max Neumann em Berlin. Compartilhar deste diálogo é algo rico. Não se trata de pouca cousa.
[início: 21/02/2014 - fim: 19/04/2014]
"Autorretrato de otro: Sueños de la isla y la ciudade de antaño", Cees Nooteboom, Max Neumann (desenhos), tradução de Fernando García de la Banda, Madrid: Calambur Editorial (coleção Poesía), 1a. edição (2013), brochura 14x22,5 cm., 160 págs., ISBN: 978-84-8359-244-1 [edição original: Zelfportret van een ander. Dromen van het eiland en de stad van vroeger (Amsterdam: Uitgeverij Atlas) 1993]
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