quarta-feira, 20 de maio de 2020

anjo noturno

Há poucos dias morreu Sérgio Sant'Anna, escritor carioca bastante premiado e respeitado. A comoção nas redes sociais foi geral. Muitos amigos queridos publicaram registros necrológicos dele, reputando-o como um dos maiores escritores brasileiros de sua geração. Pois eu, sempre vaidoso em dizer que já li de tudo e mais um pouco, dei-me conta que nunca li Sérgio Sant'Anna, nada mesmo, ai de mim (a vaidade é o mais tolo dos vícios). Procurei nos guardados e garimpei alguns livros dele (sou um fiel discípulo de Richard de Bury e em casa guardo mais livros que viverei para um dia ler, ou tampouco reler, paciência). Resolvi ler o primeiro deles que encontrei, "Anjo noturno", publicado em 2017. São nove narrativas, realmente muito interessantes. As duas primeiras, "Augusta" e "Um conto límpido e obscuro", são contos curtos, que exploram estágios opostos da cumplicidade e tensão sexual que sempre existe entre homens e mulheres, no segundo a de quem se conhece muito bem e sublima o sexo, enquanto no primeiro a do casal que mal se conhece mas percebe a mútua atração de seus corpos. "Talk show" é uma divertida confissão de um sujeito que cai na armadilha da necessidade e comparece a um grotesco programa de entrevistas. Os dois seguintes, "A mãe" e "A rua e a casa", são distintos na forma (cabe dizer que todos os contos/narrativas deste volume são bem inventivos e diferentes entre si), porém parecem tratar de um mesmo sujeito em duas situações distintas: primeiro conta o que sabe sobre sua mãe e termina fazendo o censo das mortes de sua família, no segundo conta o cotidiano carioca dos anos 1940/50 (num feliz experimento de construção de uma narrativa em segunda pessoa). "Amigos" é um resumo sentimental de um Brasil que faliu em sua potência (como todos os brasis passados e futuros faliram e falirão inapelavelmente), aquele Brasil do período que vai da segunda eleição de Getúlio Vargas para a presidência e o golpe de 1968 dentro do golpe militar de 1964. "História de um pensamento" é uma epifania, a tentativa de explicar a fugacidade de um pensamento que se desprende de um corpo. "Uma peça sem nome" é um drama é cinco atos curtos, que lembra a ambientação de "A comilança", aquele filme de Marco Ferreri, dos anos 1970, em que se satiriza uma sociedade decadente (não consigo imaginar uma cidade brasileira prestar-se a isso tão bem quanto o Rio de Janeiro contemporâneo). A última das nove narrativas é "O conto fracassado", uma exuberante demonstração de como se dá o processo criativo, a construção ficcional, o ofício do escritor, no qual o autor parece retomar vários dos temas explorados nas oito histórias anteriores, como se fossem escolhos em um rio que se cruzou. Enfim, Sérgio Sant'Anna nos ensina, neste pequeno e potente livro, que não há assunto ou conceito que não possa ser plasmado em prosa, desde que o autor tenha destreza e tino adequados. Haverá mais Sant'Anna por aqui. Vale! 
Registro #1531 (contos #177) 
[início: 10/05/2020 - fim: 14/05/2020]
"Anjo noturno: narrativas", Sérgio Sant'Anna, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 176 págs., ISBN: 978-85-359-2972-0

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