Deus não morreu, mas Friedrich Nietzsche sim, em 1900. Todavia, uma vez por ano (de acordo com o que inventa Carlos Fuentes neste curioso romance), Nietzsche tem licença para visitar uma vez mais o mundo dos vivos. Na maioria das vezes interage com pessoas comuns, neófitos de filosofia, o que o aborrece, mas há vezes em que tem mais sorte e encontra um bom interlocutor. É de um encontro destes, entre Nietzsche e um escritor, frente a frente nas varandas de seus quartos em um hotel, que brota "Federico en su balcón". O livro é dividido em quatro partes. Na primeira Nietzsche e o narrador do romance que se lê, ainda algo desconfiados um do outro, pois se percebem idênticos, tanto na fisionomia quanto na índole, discutem temas diversos, num viés filosófico: ironia, justiça, beleza, loucura, dor, violência, morte, política. Já nas três partes seguintes o leitor descobre que aquilo que o narrador contou ao filósofo para exemplificar o entendimento atual de sua filosofia é um romance, que trata basicamente de uma revolução política, seguida de um período de caos, ditadura, assassinatos e traições até, por fim, findar numa contra-revolução burguesa. Saúl, Dante e Aarón são os líderes (e são a síntese dos grandes revolucionários da história: Che Guevara, Danton, Fidel, Robespierre, Lênin, Marat, Mao, Stálin, Zapatta, Luther King, Ghandi). A revolução narrada é a síntese de todas que conhecemos (como a americana, a francesa, a cubana, a russa, a mexicana ou a chinesa), mas também podemos pensar que Fuentes tenha se inspirado nos desdobramentos da recente primavera árabe. Nietzsche e o narrador refletem sobre o quão incontroláveis são os movimentos sociais (que sempre foram e sempre serão manipulados, pois não há idealismo que vença a vocação para o erro nos homens). Falam também da dimensão humana nas revoluções, afinal a vida privada de cada um se contamina das grandes transformações sociais, que, por sua vez, não são apenas a soma dos atos e destinos de cada indivíduo que participa (ou não) delas. Como em toda revolução há muitas camadas de entendimento dos fatos. Cada um dos líderes tem relacionamentos amorosos complexos (três mulheres: Gala, María-Águila e Elisa, fazem par aos três líderes revolucionários), famílias amalucadas (um dos líderes, Dante, tem um irmão mais velho, Leonardo, que é seu duplo e seu oposto, um pai que deve ser "freudianamente" morto, uma mãe que reinventa seu passado e seu futuro). As personagens femininas são importantes nos desdobramentos da trama. Todos os personagens passam por metamorfoses (ideológicas, éticas, políticas, sexuais). A biografia e aspectos da filosofia de Nietzsche (a vontade de poder, o eterno retorno, o divórcio entre homem e natureza, a função da arte, a defesa da violência, os limites da capacidade humana) entram na trama. Talvez seja possível dizer que o livro pretende discutir o quanto sua filosofia é mal entendida, mal interpretada, deformada, para fins políticos e de propaganda. O livro é bem intrincado, experimental, difícil de ler, mas o resultado é bastante satisfatório. Fuentes, do meio para o final do livro, ajuda o leitor com mais referências históricas e sínteses (as conversas entre Nietzsche e o narrador servem basicamente para pontuar o que está sendo inventado no romance). Há um tanto de surrealismo e magia nele, mas nada absurdo. Alguém que conheça bem filosofia talvez aproveite melhor as alusões e associações de Fuentes, mas pode ser que seja eu quem esteja superestimando tudo isso. Compartilho algo do pessimismo do narrador (mas fica claro que Fuentes é essencialmente otimista; seu bom humor e fé na humanidade domesticam o livro). Por fim cabe aqui o registro de que este é um romance póstumo. Fuentes morreu em maio de 2012 e o livro foi lançado apenas em novembro daquele ano.
[início: 22/08/2013 - fim: 16/10/2013]
"Federico en su balcón", Carlos Fuentes, Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara (Santillana ediciones generales), 1a. edição (2012), brochura 15x23 cm., 304 págs., ISBN: 978-987-94-2671-4
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