Esse volume reúne três textos de Sir Thomas Browne e um apêndice (divertido, cabe dizer) assinado por Javier Marías, também tradutor e editor dos textos (por sua diminuta porém seminal Reino de Redonda). "Religio Medici - La religión de un médico" é o texto mais longo (e o mais importante, chegou a ser colocado no index papal de obras proibidas). Publicado originalmente em 1643 Religio Medici reúne reflexões sobre a fé cristã, mas longe de ser um manual de cristianismo oferece ao leitor boas digressões sobre a prática da medicina, o estudo da filosofia, da astrologia e da alquimia. Browne é basicamente um cientista natural de seu tempo, que adequa seu ofício às conveniências religiosas da Inglaterra do século XVII, mas cuja curiosidade intelectual o faz explorar com algum rigor fenômenos físicos, claro, no limite do esoterismo se comparamos sua prática com o que se entende por ciência hoje em dia. Hydriotaphia (Urn Burial, or a Discourse of the Sepulchral urns lately found in Norfolk) é de 1658. Trata-se de um texto onde Browne descreve urnas funerárias (que ele imaginava serem de romanos, mas sabemos hoje serem de saxões) e dos hábitos de sepultamento (a queima ritual do corpo e o enterramento das cinzas e dos ossos - procedimento utilizado pelos povos antigos - em contraposição ao enterramento do corpo - prática mais comumente utilizada pelos homens de seu tempo). Browne discute basicamente a questão da mortalidade (ou não) dos corpos e das almas, além de propor curiosas reflexões sobre a melancolia - antecipando algo da psicologia (clínica) necessária para entender este estado de espírito. "On Dreams - De los sueños" é um opúsculo na forma de carta, publicado postumamente, em 1682. Browne digressa sobre a função dos sonhos. Defende um ponto de vista racionalista, retirando dos sonhos qualquer poder de influir no mundo real vivido pelos homens. Ele exemplifica (a partir dos registros de textos bíblicos e clássicos) o quão aleatórios e indomáveis são os sonhos. Fala também da passagem inexorável do tempo, que retira de nossos atos corriqueiros qualquer valor ou importância. Sua prosa é muito rica, repleta de citações e associações interessantes. As extensas notas que estão incluídas na edição ajudam o leitor a acompanhar o texto. A imaginação que brota dos texto é vasta e poderosa. Seu estilo e humor são inspiradores. Sua retórica propicia ao leitor partilhar de suas dúvidas (antes de suas certezas), o quê é sempre bom que um autor faça. Talvez seja o caso de não nos surpreendermos do fato que um sujeito do século XVII alcance reunir reflexões ainda importantes sobre a psicologia humana, afinal de contas estamos sempre as voltas com os mesmos temas e conceitos (e os homens são mesmo uns tolos, que pouco aprendem, pouco lembram e pouco sabem, ai de nós). Javier Marías publicou originalmente estas traduções em 1986. No apêndice ele descreve a divertida confusão que provocou (com uma das notas da primeira edição de sua tradução) ao citar a provável invenção de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, também eles tradutores de Browne, de um trecho de Hydriotaphia. Comecei a ler este livro ainda no ano passado, mas após terminar Religio Medici achei que precisa decantar aquelas idéias e associações por uns tempos. Não tinha ciência que o retomaria somente tanto tempo depois. Sorte minha.
[início: 30/08/2012 - fim: 27/09/2013]
"La religión de un médico, El enterramiento en urnas", Sir Thomas Browne, tradução de Javier Marías, Barcelona: Editorial Reino de Redonda (coleccíon Debolsillo Clásica), 1a. edição (2012), brochura 12,5x19 cm., 287 págs. ISBN: 978-84-9989-753-0 [edição original Religio Medici (Londres, 1643); Hydriotaphia (Londres, 1658); On Dreams (Londres, 1682)]
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