sábado, 28 de dezembro de 2019

os judeus e as palavras

Esse livro acompanhou-me por muitos meses. Comecei a ler ainda em janeiro, semanas após a morte de Amós Oz, há exatamente um ano, num 28 de dezembro como hoje. De Oz, seminal escritor israelense, que tantas maravilhas produziu, só registrei aqui os poucos livros que li após 2007: Sumchi, Escenas de la vida rural, A caixa-preta, e El mismo mar. Todavia, logo o esqueci em algum canto, "Os judeus e as palavras" não era o tipo de livro que se deixava ser lido próximo ao mar e sob sol forte onde eu estava (muito embora deva ter sido escrito nestas condições, pois Oz vivia em Tel Aviv em seus últimos anos). Depois, no final de maio, passei a ler com disciplina, mas li aos poucos, tentando acompanhar bem as reflexões de Amós Oz  e sua filha, Fania Salzberger, uma professora universitária. Se trata-se de uma obra produzida a quatro mãos, o leitor aprende aos poucos a distinguir as ênfases particulares de cada um deles, mesmo quando não é lembrado explicitamente por meio da formula "o romancista entre nós" ou "a historiadora entre nós", que aparece várias vezes no livro. O volume é dividido em quatro capítulos que tem aproximadamente a mesma extensão, 40-60 páginas, e um curto epílogo. Em "Continuidade" é desenvolvido o argumento principal do livro, sua ambição grafada na apresentação: descrever como antes é o amor pelas palavras e a familiaridade precoce com a conversa, o diálogo, a experiência do debate, o que define especialmente o povo judaico de todos os demais. Dito de outra forma, eles argumentam que antes do étnico e do político, o que define os judeus é a história comum e sua interpretação, coletiva e sempre reconstruída, que é passada de indivíduo a indivíduo, de família a família, de rabino a rabino, de yeshiva a yeshiva, de Shtetl a Shtetl. No segundo capítulo, "Mulheres vocais", para mim o mais interessante do conjunto, os Oz defendem que nenhuma outra sociedade, antes do início da modernidade, deu voz às mulheres, as registrou em documentos, as mitificou em histórias tradicionais (ao menos nenhuma outra tem um conjunto tão poderoso de heroínas para cantar e louvar, desde o início dos tempos). Essas poderosas vozes femininas, que ecoam da Torá e do Talmude, são as vozes de uma miríade de mulheres que transmitiram desde sempre a seus filhos a condição e particularidade do povo judaico, alicerçando sua perenidade. "Tempo e atemporalidade", terceiro capítulo do livro, gravita em torno da evolução das palavras, da etimologia do hebraico, de como os jovens, estimulados a estudar a Torá, aprendiam a lembrar, a aprender, a discutir. No quarto e último capítulo, "Cada pessoa tem um nome; ou os judeus precisam do judaismo?", o tom é ligeiramente diferente. Oz e sua filha provocam o leitor a entender a separação entre o hebraico moderno e o hebraico bíblico, a separar a cultura israelita contemporânea da religião e das tradições, entender que o Israel, como estado, é algo bem diferente que o judaismo praticante em todos os lugares do mundo contemporâneo. Que judaismo é uma cicilização. No epílogo os Oz sugerem que o leitor tente imaginar ter lido este livro substituindo sempre  a palavra judeu pela palavra leitor. E é para este leitor - o leitor capaz de se incluir nesta aventura - que o livro foi imaginado. O leitor curioso pode fazer bom uso das extensas notas (chamadas aqui de fontes); de um fundamental glossário e de um detalhado índice onomástico. Apesar de ter terminado de ler há três ou quatro meses, resolvi finalizar o ano com este registro. O formato de interlocução louvado no livro é algo que deveríamos fazer. Claro, vivemos tempos terríveis, onde apenas ouvir os argumentos de outros parece ter se tornado impossível, mas se temos algum apreço pelas eventuais novas gerações, deveríamos ter essa crença na possibilidade de que alguma verdade ou valor possam ser transmitidos, de pais para filhos; de amigos para amigos; de vizinhos a vizinhos; e, até mesmo, entre completos desconhecidos. Talvez para isso - como se diz em um velho filme do Woody Allen - precisássemos de ter a capacidade de amar (pois o universo é indiferente aos homo sapiens). Paciência. Vamos em frente. Em 2020 tem mais. Vale! 
Registro #1480 (crônicas e ensaios #265) 
[início: 30/05/2019 - fim: 07/09/2019]
"Os judeus e as palavras", Amós Oz, Fania Oz-Salzberger, tradução de George Schlesinger, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 1a. edição (201r), brochura 14x21 cm., 251 págs., ISBN: 978-85-359-2523-4 [edição original: Jews and Words (Berlin: Jüdischer Verlag Berlin) 2013]

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