quarta-feira, 3 de junho de 2020

amazona

Esse foi o livro mais divertido que li neste ano. Ao mesmo tempo é dos livros mais transgressores e potentes que li, tanto pela fina percepção da realidade brasileira quanto pela capacidade de denúncia de nossas contínuas e voluntárias mazelas. "Amazona", de Sérgio Sant'Anna, foi publicado originalmente em 1986, no início daquele torto interregno entre o último presidente do período ditatorial, João Figueiredo, a patética posse de José Sarney no lugar do morto eleito indiretamente, Tancredo Neves, a constituinte de 1988, as eleições diretas de 1989 e a posse de Fernando Collor. Trata-se de um folhetim sofisticado, a história de uma mulher chamada Dionísia, que por um lance do destino sai de sua Niterói fundamental e da condição suburbana de mulher de um bancário carreirista, segundo ou terceiro escalão de um banco carioca ligado ao regime militar, para tornar-se candidata às eleições para a Assembleia Constituinte e eventualmente candidata presidencial em 1988, parte de um ufano projeto proto anarquista de construção de um Brasil mais democrático. O livro é povoado por personagens interessantes, todos eles que podem ser identificados com arquétipos da brasilidade: o puxa-saco, o corrupto, o venal, o falso intelectual, o fascista, o mentiroso, o machista, o conservador, o assassino, o torturador, o arrivista, o drogadito, o sujeito de classe média enfastiado, o beato, o hedonista, o sádico, o elitista, o falso esclarecido, o hippongo eterno, o idiota fundamental, o patético sonhador esquerdista, o sáfico, o escravo mental, e tantos outros, que só aqui são levados a sério (ou tolerados, aceitos - por conta das categorias politicamente corretas). As mulheres de Sant'Anna são perspicazes, inteligentes; os homens são ridículos, tontos. Vários truques que lembram os livros do Machado de Assis prendem o leitor à narrativa. O desejo, a morte, os jogos literários povoam o volume. Fazia um tempão que não lia um livro com tantas boas descrições de trepadas, gozos, fodas, transas, cópulas, todas elas sem culpa, naturais, integradas ao texto da melhor forma possível. Gostei muito. Minha primeira impressão foi a de inveja de quem leu esse livro em 1986. Afinal, toda a materialidade das desgraças brasileiras dos anos 1980 em diante está nele contida, escrachada, debochada, denunciada, achincalhada como sempre deve ser, "avant la lettre". Erza Pound sempre esteve certo quando disse que os verdadeiros artistas são antenas da raça, antecipam os desenvolvimentos da sociedade, como um sistema de alarme, que - como sempre acontece no Brasil - ignoramos solenemente, incapacitados que somos a enfrentar nossos fantasmas. Bueno. Livro bom prá caralho. Recomendo. Grande Sant'Anna. Vale! 
Registro #1537 (romance #383) 
[início: 14/05/2020 - fim: 17/05/2020]
"Amazona", Sérgio Sant'Anna, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / Penguin Random House), 2a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 302 págs., ISBN: 978-85-359-3274-4

Um comentário:

Vera Queiroz disse...

Não inveje, eu provavelmente li esse livro à epoca de seu lançamento, porque Sant'Anna era obrigatório naquele então, e naquela minha idade (também) - eu estava por volta dos 30 anos. Nesse agora, nos meus setenta, não lembro da história, nem de nenhum outro livro dele, e li vários, com certeza. Tento, nessa pandemia, ler mais, mas há tanto o que fazer para manter o vírus fora - higienizar tudo, rigorosamente tudo, fora do corpo, e no corpo, dentro da casa, e fora da casa, cozinhar, lavar, passar ferro nas máscaras, descer pra pegar sol, voltar e higienizar tudo tudo de novo, pesadelo total. Enfim, vim aqui procurar o nome de um amigo, que eu também havia esquecido, e observo que você continua em seu monastério particular, cercado de livros, e vorazmente lendo, que maravilha. Torço pra que sobrevivamos todos e todas, e que a vacina chegue logo. Axé, Aguinaldo, vida longa aos livros, que é como o Sergio também permanecerá entre nós. Grande abraço, Vera