terça-feira, 9 de junho de 2020

habitante irreal

Já registrei aqui, do inquieto escritor Paulo Scott, algo sobre três de seus romances ("Ithaca Road", "O ano em que vivi de literatura" e "Marrom e amarelo") e dois de seus conjuntos de poemas ("Garopaba, Monstro, Tubarão" e "A timidez do monstro"). Trata-se de um autor que experimenta bastante, tanto com a linguagem quanto com os temas. É um autor que não aposta, até onde sou capaz de entender, em fórmulas fáceis ou segue caminhos literários confortáveis. "Habitante irreal" foi publicado originalmente há quase dez anos, em 2011. Começa em 1989 e segue até quase o final da segunda metade da primeira década dos anos 2000. Há um detalhe na narrativa que me faz imaginar que tudo se passa mesmo em uma única noite turbulenta e de sonho, mas isso cada leitor é quem deve conferir. Acompanhamos os destinos de três protagonistas: Paulo, um sujeito patético, que se deixa desgraçar pela vida, por ser incapaz de pensar nos desdobramentos de seus atos; Maína, uma jovem indígena, do povo Kaingang, que vive o mesmo destino que quase todos os indígenas deste desgraçado país experimentam; e Donato, filho de Maína, um jovem que pelo azar do destino e da vida, como sempre acontece, o faz consumir sua psique e tolerância para alcançar sobreviver aos atos de terceiros, atos terríveis, muito além de seu controle e até mesmo compreensão. A narrativa enfeixa muitos temas, talvez mais temas que um autor menos corajoso, ou menos senhor de sua capacidade criativa, fosse capaz de equilibrar ao longo de todo o romance. O volume é dividido em quatro capítulos. Os dois primeiros correspondem ao encontro - e aos efeitos do encontro - entre Paulo e Maíra. O terceiro descreve a educação sentimental de Donato. O quarto e último tratam do resultado de um quase experimento antropológico, perpetrado por Luísa e Henrique, os pais adotivos de Donato. Trata-se de um romance em que brotam reflexões e ecos factuais de importantes questões brasileiras contemporâneas: a ascensão e morte do projeto esquerdista de poder, o aborto, o genocídio indígena, o incesto, a judicialização do cotidiano das gentes, o suicídio, a questão fundiária, a fuga hedonista, o tardio iluminismo brasileiro (se é que se pode falar em iluminismo neste país), a migração de legiões de brasileiros para outros países. Enfim, um panorama cirúrgico do Brasil. Há um faceta freudiana também, uma necessidade de matar um pai que não merece nem mesmo a morte. Paulo Scott alcança oferecer ao leitor um portento, uma miríade de questionamentos sobre nossa particular condição de brasileiros, que oscilamos entre a cumplicidade com crimes imprescritíveis e a sensação de fracasso pessoal, de uma culpa repartida.  Bueno. Há livros que esperam seus leitores nascer (ou a apanharem um bom tanto da vida, antes de serem capazes de absorver as reflexões neles contidas). Obviamente não posso dizer nada sobre qual seria o  impacto de ter lido esse livro em 2011, mas lendo-o agora, imagino que pouco importa, pois ainda há legiões de viventes deste país que ainda não acompanharão - hoje, já início da segunda década do século XXI, às provocações e encantamentos que ele oferece. Belo livro. Vale! 
Registro #1539 (romance #384) 
[início: 25/05/2020 - fim: 26/05/2020] 
"Habitante irreal", Paulo Scott, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Selo Alfaguara (Grupo Prisa), 1a. edição (2011), brochura 15x23 cm., 262 págs., ISBN: 978-85-7962-107-9

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