"Marrom e amarelo" é um romance corajoso. Paulo Scott, autor já experiente e premiado, poderia povoar sua narrativa com chavões politicamente corretos, entendimentos de almanaque, fórmulas mágicas e desejos travestidos de bom mocismo, porém oferece uma boa e honesta história, que pode (ou não, convenhamos) provocar em cada leitor reflexões sobre sua própria postura em relação ao mais silente dos dramas brasileiros, que é a questão do racismo. Na história de Scott o narrador, Federico, um respeitado ativista que administra uma ONG em Brasília, quase cinquenta anos, é convidado a fazer parte de um grupo de trabalho ministerial cujo objetivo é validar um software que seria utilizado pelo governo para preencher as vagas de cotistas "pretos, pardos e indígenas" no ensino público federal. Tema mais complexo e explosivo é difícil, mesmo neste surreal, doente e insuportável país, onde toda maluquice ganha seu espaço e fama, onde todo ato vil alcança respaldo bovino de legiões. No início da trama, que a bem da verdade é curta, coisa de 150 páginas, acompanhamos as motivações e propostas de cada um dos membros do grupo de trabalho, assim como sobre o estado da arte do debate nacional sobre racismo, a perene tensão racial, as políticas públicas e sociais voltadas aos negros. O sarcástico panorama construído por Scott do que seria um procedimento digital de classificação racial contrasta com a descrição jornalística do que tem acontecido no mundo real das universidades públicas desde a promulgação da lei das cotas (ele se furta de citar o gaúcho que na prática engendrou a classificação racial contemporânea no Brasil, mas tudo bem, trata-se de um livro de ficção, não de sociologia ou história). Bueno. Aos poucos o leitor é levado para um outro território, muito mais fértil e adequado ao debate sério sobre o fundamental tema do racismo. O romance passa a gravitar o passado de Federico, sujeito nascido em Porto Alegre nos anos 1960, filho de funcionários públicos negros de classe média, que é um tanto mais claro que seu irmão mais novo, Lourenço. Um fato de seu passado, a briga entre jovens negros e brancos na entrada de um clube social da cidade, passa a assombrar Federico, quando uma sobrinha sua é presa em posse de uma arma durante uma manifestação. Scott alterna em curtos capítulos cenas de seu passado, sua educação sentimental, a influência dos ensinamentos de seus pais e o áspero aprendizado prático nas ruas, com suas reflexões e conflitos atuais, sua inapetência para relações afetivas duradouras, sua solidão entranhada, o distanciamento discreto que tem da família. Há algo de nostálgico no livro. Scott passeia por sua Porto Alegre fundamental, cita todo o tempo suas ruas, hotéis, bares e restaurantes, faz seus personagens navegarem pela cidade como certos gregos que um dia perderam-se no Mar Egeu, após a guerra em Troia. Seu protagonista, Federico, tem mesmo algo de herói grego, pois parece ser mais altivo, forte e inteligente que todos a seu redor, mas sabe que também é mortal, frágil e falível. A coragem física dele em uma briga (em seu passado) e sua coragem moral, ao confrontar um delegado de polícia (no tempo presente da narrativa), são invulgares, tanto nos anos 1980 quanto nos anos 2010. Enfim, trata-se de um belo romance, que antes provoca reflexões, e não simplesmente oferece respostas rasas aos leitores. Lembrei muito de Philip Roth, de seus livros sobre a questão judaica, sobre o racismo na sociedade americana, da capacidade de Roth abordar corajosamente os temas mais espinhosos possíveis com coragem e gênio literário (o mesmo vale para Scott). Antes de terminar, cabe registrar aqui que a forma utilizada por ele para construir seus diálogos, fazer fluir a consciência de seus personagens, é sim o ponto mais alto do livro. Evoé Scott, Evoé. Vamos em frente. Vale!
Registro #1446 (romance #363)
[início - fim: 03/09/2019]
"Marrom e amarelo", Paulo Scott, Rio de Janeiro: Editora Schwarcz / Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2019), brochura 15x23 cm., 158 págs., ISBN:
978-85-5652-091-3
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