domingo, 14 de junho de 2020

amavisse

Já contei aqui sobre o dia em que fui ao lançamento de "O caderno roda de Lori Lamby", da Hilda Hilst, porém, por arrogância ou timidez, acabei não comprando o livro naquele momento e só levando seu "Amavisse", que já tinha, para ser autografado. Trinta anos depois, nestes dias bestas, isolado em minha mansarda, recolhi vários livros que estavam perdidos nos guardados. Lembrei-me novamente da Misa, do Péricles, dos dias paulistas, daquele "mezzo del cammin di nostra vita", pois um dos livros que encontrei foi exatamente "Amavisse", que há época ela dizia ser seu último livro de poesias (felizmente ela abandonou esse projeto e publicou pelo menos três outros volumes de poesias depois, antes de morrer, em 2004). "Amavisse" enfeixa três conjuntos: Amavisse, Via espessa e Via vazia, com, respectivamente, vinte e um, dezessete e doze poemas. Num poema de apresentação ela se diz uma porca-poeta e reclama da fome de deus por desgraças, perguntando se ele já ouvira falar na palavra amor. No primeiro conjunto, Amavisse, encontramos poemas de amor, lançados ao vento por uma mulher que se escancara (a mulher-avesso) e são levados ao leitor metamorfoseados em pássaros (os pássaros-poesia). Hilda cria várias imagens realmente bonitas, faz brotar neologismos (adoro seu reverdeço e também de suas muitas palavras valise, sempre geniais), mostra sua paleta das paixões: o peito tingido de vermelho, o amor púrpura, chagado. Ao final do conjunto ela se pergunta "(...) o que há de ser da minha boca de inventos / Neste entardecer. E do outro que sai / Da garganta dos loucos, o que há de ser?". No segundo conjunto, Via espessa, um louco se apresenta, nas vestes junguianas da sombra, aquele arquétipo que representa o lado sombrio, conturbado e primitivo da personalidade dos homo sapiens, aquela parte da consciência individual que não foi exatamente assimilada e possa ser incorporada à consciência coletiva. Esse louco segue sua Samsara pessoal, suas metamorfoses, seus renascimentos, saltimbanco. No final do conjunto, acontece a fusão, entre a poeta e sua sombra: "E enfeixando energia, cintilando / Fez de nós dois um único indivíduo". O último conjunto, Via vazia, é de poemas com menos versos, comparados aos dois conjuntos anteriores. Como um animal em uma floresta primitiva a poeta reclama do pai, das vicissitudes deste mundo, acusa esse pai de já estar cumprido o fado do homem, transformado em um "(...) escuro cego raivoso animal (...)", como esse pai pretendia desde o início. Todavia, é dela, a poeta, ao final também deste terceiro conjunto, a palavra final, o controle do processo, em uma antropofagia pessoal: "O tempo não roerá o verso da minha boca. / Águas manchadas de um torpor de vinhos: / Hei de tragá-las todas. E lúbrico, descontínuo / O tempo não viverá se tocar a minha boca". Que belo livro, ao qual um sujeito precisa sim voltar de tempos em tempos, sobretudo neste, tão contaminado por desinteligência e voluntária escravidão à totalitarismos. Só coisas como o amor, os amores de Hilda Hilst, parecem ser capazes de poder nos salvar. Vale! 
Registro #1542 (poesia #130)
[início: 17/05/2020 - fim: 22/05/2020] 
"Amavisse", Hilda Hilst, São Paulo: Massao Ohno Editor, 1a. edição (1989), brochura 14x21 cm., 48 págs., sem ISBN

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