domingo, 27 de outubro de 2013

felicidade demais

São dez contos. As histórias parecem simples, cotidianas, mas em algum momento, em todas elas, percebemos que tudo é muito mais complexo. Não apenas complexo, também violento, cruel, enganador. É assim também no mundo real, o homo sapiens sapiens sempre prefere acreditar na versão simples das coisas, na primeira impressão de um evento, de um relacionamento, de uma questão pública, antes de aceitar as camadas mais duras (e verdadeiras) de entendimento que as coisas sempre têm. Os contos parecem fáceis de emular. Nada mais falso. Um efebo, um aprendiz, poderia sim usá-los como modelo, claro, mas dificilmente alcançaria - com tanta economia e com um vocabulário tão corrente, comum - alcançar tal profundidade, desvelar tão bem os paradoxos da alma humana, descrever as facetas do temperamento das pessoas, registrar com tanta amplitude e precisão o cotidiano que compartilhamos todos, mas tão poucos tem a capacidade de entender (ou mesmo de aceitar). Os protagonistas das histórias - quase sempre mulheres, mas não apenas elas - são pessoas que vivem suas vidas como a grande maioria das pessoas vive: satisfatoriamente, sem grandes realizações, e sem se preocupar com as turbulências do mundo ou com o encantamento que tanto a arte quanto a ciência oferecem. São vidas marginais, mas exemplares, exuberantes em sua individualidade, como se Alice Munro fosse uma artífice de mitologias modernas. As histórias descrevem relacionamentos afetivos, casamentos e relações de amizade sem muita consideração, explicitando algo da hipocrisia que muitas vezes é a única coisa que os sustentam. A memória dos personagens sempre é seletiva. O ódio e o amor, o desejo e a frustração que brotam dos relacionamentos são, na forma como descritos por Munro, algo vívido, verossímil, real. Ela nunca conta cronologicamente suas histórias. Assim como nós, quando narramos algo para alguém, e até para nós mesmos, Munro superpõe informações que avançam ou retrocedem dias, semanas, décadas, uma vida inteira até, de forma a fixar maior dramaticidade ao que se conta (em nosso caso o fazemos porque somos sempre benevolentes e auto indulgentes com nossas biografias). Com duas ou três frases ela nós faz entender uma situação que poderia tomar páginas nas mãos de um escritor menos hábil. Há também sempre a incerteza sobre o desfecho das histórias. Será que entendemos todas bem? Assim como na vida real talvez seja mais fácil nos iludirmos e acreditarmos em finais ou totalmente felizes ou completamente trágicos. A economia psicológica é ilusória. Mas Munro nos oferece algo mais para reflexão. Sim, Alice Munro, duquesa de Ontario (com resolveu chamá-la o rei Xavier I de Redonda, uma história divertida que vale a a pena conhecer), é mesmo uma grande escritora. Boa surpresa conhecer os textos dessa senhora que acabou de receber o prêmio Nobel.
[início: 17/10/2013 - fim: 25/10/2013]
"Felicidade demais", Alice Munro, tradução de Alexandre Barbosa de Souza, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm., 341 págs., ISBN: 978-85-359-1725-3 [edição original: "Too Much happiness: stories" (New York: Knopf Doubleday Publishing Group) 2009]

Um comentário:

vera maria disse...

Você sempre um gentleman, foi lá na minha casa espantar os fantasmas, legal :))

Não entendi por que está assíduo dos aeroportos em nome da ciência, mas espero que esteja se divertindo também - ou apesar de :))

Abraço pra você também, Ithaca virá em breve,
clara