Em agosto passado vi a exposição de Lucian Freud organizada pelo MASP. Eram sobretudo gravuras e lembro-me de ter ficado aborrecido por não rever a potência de seus óleos (ok, haviam alguns, mas nada que impactasse como aqueles que vi no Thyssen-Bornemisza e no Reina Sofia tempos atrás). Fiz aqui um registro do belo catálogo que acompanhava a exposição paulista. Foi doña Marilu Kahl, grande amiga, quem me avisou naquela mesma época sobre a existência dessa deliciosa biografia: "Café com Lucian Freud". Publicado originalmente em 2013, dois anos após a morte do artista, é resultado de reiterada convivência entre biógrafo e biografado. Geordie Greig é um jornalista inglês que teve a sorte de ser incluído/aceito no restrito círculo de amizades de Freud e conseguiu, ao longo dos últimos dez anos da vida de seu biografado, uma série de entrevistas (ou antes, conversas informais, descontraídas) que se transformaram num livro. A edição é muito boa, incluí 46 reproduções fotográficas coloridas que
por si formam uma bela narrativa do biografado; um índice e a árvore
genealógica de Lucian (que o liga ao avó Sigmund Freud e aos 14 filhos
reconhecidos como seus). Encontramos nele muita informação factual e história, além de fofocas divertidas e a descrição de alguns dos muitos causos mirabolantes vividos por Freud). Greig registra simultaneamente a genialidade do artista e a intratabilidade do sujeito. Charmoso e carismático, irascível e disciplinado, desde jovem Freud relacionou-se indistintamente com a alta sociedade inglesa e com gangsters, agiotas e outros sujeitos durões da Londres suburbana de seu tempo. Frequentemente Freud pagava suas dívidas de jogo com quadros (que hoje valem milhões) e utilizava os serviços dos mesmos gangsters para os quais devia dinheiro quando queria ameaçar alguém ou recuperar um quadro que não gostaria que fosse vendido para terceiros ou leiloado. A vida sexual de Freud percorre todo o livro, afinal ele teve 14 filhos reconhecidos como seus (muito embora exista quem defenda que ele pode ter tido até uma dezena mais, eventualmente assumidos por outros pais). A narrativa de Greig leva o leitor por seus relacionamentos, às mulheres que ele amou e odiou, ao distanciamento com que se ele relacionava com as pessoas que amava - a sua maneira, a forma como administrava as amizades: frequentemente provocando intrigas sob o pretexto de manter todos afastados de sua vida privada. Devia ser uma experiência incrível privar da companhia de Freud, participar de seus longos cafés da manhã ou sessões de pintura, ser convidado para ser um de seus modelos (praticamente a única forma de relacionamento que ele realmente praticava), mas devia ser igualmente arriscado contrariá-lo ou se indispor com ele. Pelo que se depreende do livro nenhuma emoção mundana ou convenção social afetava ou restringia seu comportamento, nenhuma barreira ética ou moral o impedia de manter seus hábitos, por mais condenáveis que fossem. Lucian Freud era o exemplo acabado de alguém desprovido de culpa, era o sujeito mais livre que se pode alcançar ser (ao menos ele o foi no século XX, em seus 88 anos). Como não gostar desse velho e intratável senhor.
[início: 26/04/2014 - fim: 29/04/2014]
"Café com Lucian Freud: Um retrato do artista", Geordie Greig, tradução de Waldéa Barcellos, Rio de Janeiro: editora Record, 1a. edição (2013), brochura 15,5x23 cm., 307 págs., ISBN: 978-85-01-40414-5 [edição original: Breakfast with Lucian (London: Jonatahn Cape / The Random House Group) 2013]
2 comentários:
Conheço alguém parecido com ele, devia ser um horror coabitar com tal figura, mas deve ter tido uma vida rica, acho que esse livro virá passear aqui :))
abraço,
clara
Olá, caríssimo, chegaram hoje três livros-textos, todos com Joyce pulsando em cada página, até mesmo o Café dos confrades, que deixa vê-lo de relance no amor às palavras. Vou conviver com todos ao longo dos tempos próximos, e agradeço sempre sua inestimável gentileza e generosidade.
grande abraço, que venha Ulysses e seu séquito de admiradores.
clara
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