segunda-feira, 20 de agosto de 2018

pesado demais para a ventania

Mário de Andrade já nos ensinou que "há uma gota de sangue em cada poema". Já Ricardo Aleixo nos ensina que neles além de sangue há dor, revolta, angústia e memória de crimes, assim como também inteligência, estratégia, técnica e ação. Nesta poderosa antologia o leitor encontrará muitos exemplos do ouro fino que Aleixo tem garimpado na lavra das Musas desde o início dos anos 1990. Já registrei aqui vários dos livros nos quais esses poemas foram publicados originalmente: "A roda do mundo", de 2004; "Máquina zero", de 2004; "Modelos vivos", de 2010; "Impossível como nunca ter tido um rosto", de 2015 e "Antiboi", de 2017. Mas como não conheço todos seus livros anteriores, deve haver poemas coligidos de "Festim", de 1992; "Trívio", de 2002 e "Mundo palavreado", de 2013. A antologia "Pesado demais para a ventania" reúne 105 poemas distribuídos em seis conjuntos, envelopados por dois outros, soltos, um que abre o volume, como numa invocação, "Língua lengua", e outro que o encerra, "Meu negro", uma vibrante e potente coda. O que registrar dos seis conjuntos, sem falar muita bobagem, sem os macular com leituras tortas? Vamos a ver: (i) Em "Desde e para sempre" fala-se de família, de mitologia africana, de memórias de infância, genealogias, faz-se homenagens; (ii) Em "Outros, o mesmo" o poeta brinca e joga para valer com tipografia, com as palavras, com a métrica, registra certos espantos; (iii) Em "Ter escrito ainda não existe" reúne concretos jogos poéticos, reflexões sobre o ofício de poetar, nos conduz pelo caminho da gênese de conceitos, ideias, poemas e fragmentos da memória do autor; (iv) "O coração, meu limite" sensualiza o verso, fala-se de amor, consciência do corpo, musas mulheres, sexo; (v) Em "Multidão nenhuma" o poeta se metamorfoseia num ente noturno que caminha pela cidade, flana por ela, confronta sua belo horizonte fundamental, tenta olhar de longe e de perto as coisas, ajustando o foco da vida; (vi) Em "Queridos dias difíceis" o poeta rosna para o mundo, pisca bravo para a crítica, doma sua fera cidadã, fala dos caminhos sem volta, mostra-se pronto para um combate, pergunta-se. Os poemas quase sempre parecem brotar de algo marcante, da memória, da vida, do sangue, mas possuem, como num palimpsesto, camadas superpostas de técnica, erudição, intuição poética, influências, apuro, espantos. Sorte de quem ler esse livro, ler esses poemas, tentar decifrar esse negro enigma. Evoé Aleixo, evoé. Vale! 
Registro #1313 (poesia #98) 
[início: 10/06/2018 - fim: 15/08/2018]
"Pesado demais para a ventania", Ricardo Aleixo, São Paulo:Todavia livros, (1a. edição) 2018, brochura 14x21 cm., 196 págs., ISBN: 978-85-93828-66-9

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