quinta-feira, 22 de outubro de 2020

línea de fuego

A Guerra Civil Espanhola durou pouco menos de três anos (de 17/7/1936 a 01/04/1939). Morreram nela aproximadamente 500 mil pessoas (há quem diga que foram apenas 150 mil e há outros que afirmam que o número de mortes alcançou 1 milhão). De qualquer forma foi uma das guerras mais sangrentas do século XX, período não exatamente conhecido por valores humanistas e pacíficos. O custo social foi enorme. A ditadura franquista vencedora, que ficaria no poder por 36 anos, até meados dos anos 1970, ainda provocaria muitas mortes e o exílio de milhares de espanhóis. Arturo Pérez-Reverte, prolífico autor de trinta romances e de vários volumes de crônicas, lançou recentemente um “relato” (em suas palavras) sobre a Guerra Civil dos espanhóis. Suas motivaçôes são explicadas por ele mesmo nesta boa entrevista: Librotea El país. Sua proposta é narrar uma história de ficção, ou seja, não se trata de história, de análise política ou de sociologia. Ele situa esse seu relato em uma das batalhas mais famosas da Guerra Civil, a batalha do Ebro. A batalha real aconteceu entre 25/7/1938 a 16/11/1938 (pouco menos de quatro meses). Morreram nela aproximadamente 80 mil pessoas, em uma região de aproximadamente 800 Km². No recorte ficcional de Pérez-Reverte os sucessos acontecem em uma cidade imaginária que ele chama de Castellets del Segre, na qual, em seus 35 Km² e nos primeiros dez primeiros do conflito, morrem 3.000 pessoas. Ele povoa o romance/relato com personagens icônicos do mosaico de participantes da conflagração real: comunistas, socialistas, anarquistas, trotskistas, sindicalistas, brigadistas internacionais, nacionalistas, legionários, monarquistas, carlistas, fascistas, nazistas, falangistas. O tom não é pedagógico, mas percebe-se que Pérez-Reverte quer oferecer ao leitor a experiência da complexidade da Guerra Civil, que não pode ser resumida em platitudes como “a luta em defesa da civilização cristã contra a barbárie comunista” (dos que se afeiçoam com o discurso nacionalista de Franco, que vencerá o conflito) ou “a luta do bem contra o mal” (na igualmente vazia retórica dos republicanos, o grupo derrotado). De qualquer forma, Pérez-Reverte lamenta, em suas entrevistas, o uso "bastardo", político ou ideológico da Guerra Civil que domina os discursos contemporâneos, eclipsando o lado humano, a realidade da dor e horror, pois aqueles que participaram diretamente já estão hoje, quase todos, mortos. Não me atrevo aqui a fazer uma sinopse das quase 700 páginas do volume. É um livro fácil de ler, pois somos rapidamente capturados pela boa prosa de Pérez-Reverte. Distribuídos em três partes (e em dezenove capítulos e um epílogo), o autor alterna cenas dos dois grupos em guerra. Algumas destas cenas permitem a ele fazer alguma filosofia sobre as motivações de cada um dos envolvidos; outros distendem a tensão e o acúmulo de mortes com tiradas cômicas e jocosas; outros ainda oferecem oportunidade para discussões sobre questões de estratégia, de táticas ou para descrever os armamentos utilizados e a indumentária (nem todos usavam uniformes nesta guerra). Há também personagens femininos e uma criança, personagens que permitem discussão sobre o especial papel das mulheres e dos jovens nas guerras e sobre o impacto da carnificina neles. Pérez-Reverte trabalha muito bem os modos de falar e sotaques dos muitos grupos em luta, inclui canções, bravatas e coplas utilizadas como ferramentas motivacionais nas trincheiras. A melhor dupla de personagens é formada por Ginés Gorguel, um abobado carpinteiro do interior de Albacete, e Selimán al-Barudi, um legionário marroquino, um mouro, que combatem juntos no lado franquista e se tornam improváveis amigos. Também é muito interessante o papel de um jovem alferes, Santiago Pardeiro, que aplica com sabedoria tudo o que aprendeu na escola militar, ganhando respeito de seus comandados, todos legionários já bastante mais velhos e experimentados em batalhas. Outro personagem interessante é Saturiano Bescós, um aragonês, pastor de ovelhas, que garante momentos de descontração na trama com seu sarcasmo, senso de oportunidade e objetividade. Entretanto, é verdade que todos os demais protagonistas cumprem bem seus papéis, neste mosaico de vidas inventadas (Julián Panizo, um dinamitador comunista; Bascuñana, um cético capitão da marinha, perdido nas montanhas e vales do leste espanhol; Pato Monzón, uma disciplinada e idealista especialista em comunicações; Tonet, o garoto de 12 anos, que escolhe ajudar o grupo nacionalista mais por diversão que por ideologia; Vivian Szerman, uma curiosa jornalista americana, que sonha viver aventuras, e as vivedolorosamente; Oriol Les Forques, um catalão “requetés”, para quem a guerra era uma nova cruzada cristã; O’Duffy, um sonhador major irlandês das brigadas internacionais; Phillip Tabb, um fotógrafo destemido; o major Emilio Gamboa, que luta pelos republicanos, mas reluta em aceitar interferência dos comissários políticos russos nas questões militares). O leitor percebe rapidamente que o núcleo das forças militares nacionalistas é mais profissional, enquanto nas tropas republicanas o comando é caótico,  improvisado. Em seu livro não há grandes nomes (acho que ele só grafa “Franco” uma vez). No campo de batalha todos são quase anônimos, confia-se em apenas uns poucos camaradas, em pessoas com quem se partilha o perigo da morte. Os 3.000 mortos inventados por Pérez-Reverte, a grande maioria do lado republicano, são quase todos crianças, de 17 anos, se tanto, recrutados por que alcançaram este número mágico, não  alguma maturidade; ou indivíduos sem instrução militar alguma, capturados em cidadezinhas e forçados a lutar; ou sonhadores estrangeiros, que imaginavam lutar contra o fascismo, o mal encarnado, mas eram apenas carne barata à serviço dos planos estratégicos maiores de Stálin; ou ainda militares patriotas, cuja expertise sempre morria no fogo cruzado das ideologias, emaranhados nas quimeras de uma revolução global, que jamais acontecerá. Ele também nos ensina que em uma guerra não se morre por causas nobres, por conceitos abstratos, por bandeiras ou por líderes. Morre-se por um passo mal dado, por um cigarro acesso em hora imprópria, por fogo amigo, pelas costas, por puro azar, por uma arma que trava quando não devia, por uma ponte que cai, por intrigas de caserna e trincheiras, por falta de medicamentos, de fome, sede ou frio, por injustas acusações de covardia, por inabilidade, por uma palavra mal dita, por um documento errado ou foto familiar carregada na carteira, por um crucifixo, ou a falta dele, no pescoço. A verdade não é revolucionária, já se sabe, pois ela morre sempre no primeiro dia de cada grande batalha. Todavia, a verdade ficcional de Pérez-Reverte está registrada em um grande livro, que viverá por mais anos que aqueles que dela participaram. Parece ter funcionado o esforço de trazer o lado humano da Guerra Civil para o primeiro plano da discussão contemporânea. A repercussão - e as vendas - na Espanha é enorme. Muitos políticos ou simpatizantes de ideias de esquerda ou direita condenaram o livro, claro. Mas tanto a crítica honesta, quanto o público leitor, parece pouco interessado em disputas ideológicas, no discurso fácil, sempre dirigido apenas aos acólitos e escravos mentais dos dois bandos. Pouco importa. Como disse recentemente Pérez-Reverte em sua conta no Twitter: "Por supuesto, eso va a indignar a los que viven de lo simple, de señalar buenos y malos desde ambos extremos de la política española, los ultras,  sectarios y paniaguados de derecha y de izquierda, necesitados siempre de blanco y negros, enemigos de los matices y complejidades que les estropean el discurso fácil. También indignará a los tontos. Y seré muy feliz cuando eso ocurra, pues entonces habré logrado mi objetivo. Que empiecen a chillar las ratas". É verdade. Quem for capaz de reclamar deste grande livro é mesmo um rato, um homem oco, crâneo recheado de palha, que apenas grita palavras vazias.Vale!
Registro #1582 (romance #390)
[início: 14/10/2020 - fim: 17/10/2020] 
"Línea de Fuego", Arturo Pérez-Reverte, Barcelona: Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2020), brochura 15,5x24,5 cm., 683 págs., ISBN: 978-84-204-5466-5

2 comentários:

Sergius Gonzaga disse...

Excelente resenha. Dá vontade imediata de ler o romance. É a primeira missão de um bom crítico literário.

Aguinaldo Medici Severino disse...

Oi. Obrigado. Vale a pena ler. Abração