Há uns dez anos don Renato Cohen, sua princesa consorte à época e eu fomos ao teatro (peça terrível, pois lembro-me que dormi quase o tempo todo, em meio a um mar de gargalhadas, mas esta é outra história). Antes da peça, enquanto estávamos ainda na longa fila para entrar, conversávamos animadamente. Eles contavam sobre os planos para mudar de apartamento, eu histórias de minha recente estada na Espanha e dos livros que havia adquirido por lá. Quando citei haver encontrado uma edição bilíngue muito boa do Lazarillo de Tormes eis que fui corrigido em um detalhe banal - discreta e educadamente, cabe dizer - por um senhor que estava logo atrás de nós na fila. Ele falou com autoridade sobre o Lazarillo e também sobre Cervantes e as cousas da Espanha. Apresentou-se e conversamos um bom tempo. Era don Julio Garcia Morejón e entre outras maravilhas nos disse que havia acabado de traduzir uma história tradicional espanhola chamada "Chapéu de três bicos" e que nos enviaria um exemplar caso tivéssemos interesse. Trocamos cartões e eis que após um par de semanas recebi este "O chapéu de três bicos". Lembro-me de ter folheado o livro displicentemente quando o recebi, envolvido com outras coisas como estava. Semanas atrás, ainda no estival início de 2011, o Fernando Landgraf contou-me sobre sua aquisição de um legítimo "chapéu de três pontas", um desejo de juventude. Um gongo ressoou por meus neurônios e não sosseguei enquanto não encontrei meu exemplar do livro presenteado por don Julio nos guardados de minha biblioteca. Li "O chapéu de três bicos" com muita alegria. A edição é bem cuidada, bilíngüe, repleta de notas, com uma boa introdução assinada por Julio Morejon, uma completa bibliografia e uma detalhada cronologia de seu autor, Pedro Antonio de Alarcon. Publicado em 1874 este livro registra uma versão de uma história tradicional, onde se descreve os sucessos do amor alegre e ingênuo - mas forte - entre pessoas simples do campo. Um moleiro andaluz chamado Lucas é casado com uma bela navarra chamada Frasquita. Os homens da região, principalmente os mais poderosos, como o prefeito e o corregedor (uma espécie de magistrado judicial do rei), sempre se fazem presentes no moinho de Lucas durante as tardes de verão, pretensamente por cortesia, mas na verdade por cupidez. Lucas e Frasquita confiam na força de seu amor e gerenciam, com cumplicidade, bom humor e picardia, o assédio que Frasquita sofre. O corregedor imagina uma forma de alcançar o prêmio de uma noite a sós com Frasquita, provocando reviravoltas e confusões incríveis, principalmente associadas a quem, a cada vez, faz uso de um chapéu de três bicos (um chapéu deste tipo era o emblema oficial das autoridades constituídas na época em que se passa a história). Os imbroglios acabam se resolvendo apesar da tensão inicial. Tudo é muito divertido. Trata-se de um texto moralista e ingênuo, claro, mas que conta vividamente algo de um grupo social que ainda hoje pode ser encontrado em grotões (nem tão distantes assim) mundo afora, Brasil afora. Finda a história tudo volta a configuração inicial, inclusive com as eventuais visitas ao moinho nos finais de tarde. E como todo modismo o tempo faz com que o uso do chapéu de três bicos fosse substituído pela moda das cartolas. Mas nesta época Lucas e Frasquita já eram dois velhos - dois velhos ainda enamorados. Gostei de ter lido este livro, principalmente por relembrar de don Julio Morejon e sua generosidade. Lembrei-me que ele havia nos convidado para visitar a coleção de Quixotes que sua universidade mantinha, coisa que não fiz, ai de mim. Paciência. Neste ano voltarei a ler o Quixote e a lembrar das planícies vazias da Espanha, das cores e das rochas daquele lugar. Ya veremos. [início 28/02/2011 - fim 18/03/2011]
"O chapéu de três bicos", Pedro Antonio de Alarcón, tradução de Julio Gregório Garcia Morejón e Manoel Dias Martins, São Paulo: editora CenaUm (Centro Universitário Ibero-Americano), 1a. edição (1999), brochura 16x23 cm, 275 págs. ISBN: 85-86356-20-4 [edição original: El sombrero de tres picos (Espanha) 1874]
Um comentário:
Gostei muito de Lazarillo, até desenhei o personagem brincando com sua descrição bizarra. Passei para dar um alô e pegar umas dicas. Abraço.
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