Publicado em meados do ano passado, "Ao ponto" é uma espécie de ajuste de tom de Anthony Bourdain. Há dez anos, ao lançar "Cozinha confidencial", seu estilo debochado, direto e bem humorado agitou o mundo dos livros de gastronomia e fez seu livro entrar para a lista dos mais vendidos em quase todos os lugares onde foi publicado. Ele tornou-se uma celebridade, mas uma que não economizava sarcasmo e palavrões para descrever o quanto é isenta de glamour uma cozinha profissional e o quanto a maioria dos cozinheiros são sujeitos estressados e frequentemente intoxicados. Muita gente, inclusive no Brasil, leu sobre as maluquices que Bourdain descrevia e imediatamente o invejava, imaginando-se a comandar uma cozinha, a trepar com garçonetes e clientes lindíssimas, sendo recebido como um rei em restaurantes três estrelas, bebendo e se drogando no final da noite de trabalho. Ele descrevia também a disciplina quase militar e o aprendizado contínuo necessário para se enfrentar noite após noite o fluxo de clientes (o que tornava quase todas as experiências do livro contraditórias e auto-excludentes, como na vida, claro), mas o jorro de palavras de Bourdain encantava (e deve encantar ainda hoje, acredito) por conta do estilo e da originalidade. Parecia que ninguém havia falado sobre culinária daquela forma antes. Claro, ele não termina aquele livro sugerindo que todo neófito que tivesse algum interesse em culinária devesse abandonar seu emprego aborrecido e juntar-se a brigada do primeiro restaurante que encontrasse. O livro sugere exatamente o contrário. Mas quando um texto torna-se um best seller não importa o que está escrito, mas sim o entendimento coletivo do que está escrito, reverberado por críticos lenientes, jornalistas apressados, press-releases mal lidos, comentários de amigos que acham que "aquele livro" tem a sua cara. Logo depois da publicação de "Cozinha confidencial" ele deixou o cargo de chef do restaurante sofisticado que comandava. Criou um (ou mais) programas de televisão, passou a escrever com regularidade para jornais e revistas, fez viagens ao redor do mundo em busca de sabores e paisagens exóticas. Publicou outros livros neste período (Em busca do prato perfeito e Maus bocados). Estes dois são livros clássicos de viagem e gastronomia, algo irregulares, mas que Bourdain salva por conta de seu bom humor e o acerto da maioria de seus argumentos de antropólogo selvagem. Com "Ao ponto" ele retoma sua autobiografia. São dezenove textos independentes, crônicas que relatam as coisas em que se envolveu nos últimos dez anos. Alguns são quase contos, construções ficcionais, outros reflexões interessantes sobre gastronomia e a vida. Ele confessadamente tenta se redimir dos exageros do "livro raivoso" que o lançou ao sucesso, mas não faz concessões nem é piegas. É só um sujeito que ficou mais velho; descasou e casou novamente; tornou-se um pai cinquentão; fez novos amigos, manteve alguns e perdeu outros; comprou brigas e foi convidado para entrar em brigas; reinventou-se (sobreviveu talvez seja a palavra certa) à sua maneira. O tom de suas narrativas é variado (memória, causos engraçados, conversa olho-no-olho, divagações, especulações, humor ácido, pedido de desculpas). Não há hipocrisia. Gostei particularmente dos textos em que ele achincalha sem perdão, explicitando porque tal sujeito e/ou comportamento é condenável ou questionável. O texto onde ele faz um "Quem é quem" do mundo da gastronomia americana é muito bom. Gostei também de um onde ele descreve a habilidade de Justo Thomas, um preparador de peixes de um restaurante sofisticado (que é levado para o salão do restaurante onde trabalha, pela primeira vez, por Bourdain). Um sujeito curioso sobre o que são os menu-degustação dos restaurantes estrelados também vai se divertir com um dos textos do livro. Bourdain não nos deixa esquecer que não há boas intenções genuínas entre os homo sapiens sapiens, principalemente naqueles envolvidos em um negócio tão lucrativo e competitivo quanto o da gastronomia. No final ele faz o censo do povo que ele citou (e/ou achincalhou) no "Cozinha confidencial", já pode ir dormir em paz e sonhar com os ruídos da caixa registradora. [início 03/09/2011 - fim 06/09/2011]
"Ao ponto: uma carta de amor sangrenta para o mundo da culinária", Anthony Bourdain, tradução de Celso Nogueira, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 323 págs. ISBN: 978-85-359-1925-7 [edição original: Medium Raw: A bloody valentine to the world of food and the people who cook (Ecco Books,HarperCollins) New York, 2010]
"Ao ponto: uma carta de amor sangrenta para o mundo da culinária", Anthony Bourdain, tradução de Celso Nogueira, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 323 págs. ISBN: 978-85-359-1925-7 [edição original: Medium Raw: A bloody valentine to the world of food and the people who cook (Ecco Books,HarperCollins) New York, 2010]
2 comentários:
Parece uma delícia de leitura.
http://veja.abril.com.br/130110/diabo-ri-ultimo-p-121.shtml você podia comentar sobre este, aqui!
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