quarta-feira, 2 de novembro de 2011

vertigem

Winfried Georg Maximiliam Sebald, ou apenas W.G. Sebald, como ele assinava seus livros, tinha 46 anos e uma consistente carreira acadêmica quando publicou "Vertigem", seu primeiro texto de ficção, em 1990. Também foi poeta, ensaista e tradutor, mas foram seus livros de ficção que garantiram a ele reconhecimento e admiração. Em um período curto, pouco mais de dez anos, publicou cinco livros que são muito parecidos entre si, formando um conjunto bastante homogêneo, que talvez devesse ser lido como elementos de um único projeto literário, de uma única proposta estética. Suas longas descrições de lugares, pessoas (e das sensações que ele experimenta) parecem sempre fugir de algo objetivo, afastando-se de um final possível. Sua narrativa acumula digressões que ora aguçam a curiosidade do leitor, mas ora o entendiam. Entretanto Sebald, em geral, sabe equilibrar o que poderíamos chamar apenas de enumeração das coisas de seu interesse (a fixação de memórias pessoais e coletivas, o contraste entre o choque do novo e encantamento com aquilo que o hábito - fiel camareiro, dizia o Prout - nos oferece reiteradamente). Ele traça correspondências entre acontecimentos de sua vida (ou da vida do sujeito que narra a história, há uma superposição curiosa aqui) que parecem muito distante entre si, tanto espacialmente quanto temporalmente, mas que parecem encontrar alguma ordem na forma organizada por ele. Acho que é justamente à Proust que Sebald deve algo, afinal de contas. No "Em busca do tempo perdido" há uma história grandiosa que o leitor acompanha até descobrir no último volume o resultado das metamorfoses, das sucessivas encarnações dos personagens de Proust. Nos cinco livros de Sebald o que encontramos são reflexões e digressões sobre as experiências de vida do autor, que vive parte do horror da segunda grande guerra mundial, emigra ainda jovem à Inglaterra, alcança uma formação e uma atividade profissional sólida, mas que precisa prescrutar seu passado para entender do quê realmente é feito. Isso se repete em todos os livros dele que li (mesmo aqueles onde isso é subentendido, velado). "Vertigem" é dividido em quatro seções, que implicam em viagens de descobrimento e volta para reflexão. Primeiro ele fala de Henri Beyle (sem ajudar o leitor lembrando-o que é de Stendhal que se fala). Descreve as viagens de Stendhal pelos domínios de Napoleão e suas relações amorosas (que lembram as bizarrices de um Casanova). Na segunda seção é o narrador quem percorre um caminho parecido com o de Beyle/Stendhal, saindo de Viena, passando por Innsbruck e depois flanando pelo norte italiano, por Veneza, Verona, Pádua e Riva. O narrador de Sebald conversa com estranhos, anota impressões, experimenta coisas. Ele sempre dá um jeito de encontrar algúem que tem tanto apreço pela memória e por contar histórias como ele (claro, isso é artificial, ficcional, não há como se repetir tantas vezes no mundo real, apesar da realidade sempre ser mais surpreendente que o mundo da ficção). Na terceira seção Sebald faz um desvio e fala dos tempos de Franz Kafka em um sanatório de Riva del Guarda, no norte italiano. Através das cartas amorosas (confusamente amorosas) de Kafka dirigidas a Felice Bauer (e nesta parte Sebald deve muito ao que Elias Canetti fala do amor e do amor epistolar) Sebald desenvolve a sua teoria do amor. Na parte final Sebald (talvez fortalecido por suas errâncias italianas) parte em busca de um outro tipo de amor, o amor por uma cidade que foi a sua na Alemanha, na infância e adolescência, antes da emigração quase forçada à Inglaterra. Ali, praticamente incógnito, como um Ulysses que retorna a Ítaca mas não tem pretendentes para abater (se é que os fantasmas pessoais de uma pessoa não possam ser representados pelos pretendentes - é uma coisa para se pensar), o narrador resgata algo de seu passado, fala de suas surpresas, de suas decepções. Mas a volta inevitável à Inglaterra é feita com um novo olhar, pois cada experiência que acumulamos nos metamorfoseia um tanto e, mesmo quase-estaticamente, como na termodinâmica, voltamos diferentes de qualquer viagem (ou de qualquer vilegiatura, como Proust já nos ensinou no "Os prazeres e os dias"). Se o narrador estava incomodado e aborrecido com algo ao iniciar sua jornada ("uma fase particularmente difícil de minha vida", ele diz) ao final há a rotina e o hábito para consolá-lo das eventuais agruras que o acompanharam e que ele ainda traz de volta. Em "Vertigem" assim como nos demais livros de Sebald, há muitas imagens distribuídas no texto. Nos volumes iniciais de sua obra de ficção (Vertigem, Os emigrantes) ainda encontramos associações explícitas entre as imagens e o texto, mas nos volumes finais (Os anéis de Saturno, Guerra aérea e literatura, Austerlitz) essa associação é menos objetiva, como se ele experimentasse afirmar seu estilo. Não acredito que um outro sujeito possa usar os mesmos recursos narrativos de Sebald, imitá-lo, emulá-lo, sem parecer anacrônico e besta (já li coisas assim na seara de vários  "Jovens Escritores de Literatura Brasileira Contemporânea" - definição boa desse fenômeno inventada por don Hugo Crema - mas o efeito é risível). Afinal parece que seus temas e o tratamento que ele dá a eles é algo que não emigra bem para às mãos de um outro autor. De qualquer forma a experiência de ler esses contos e romances de Sebald foi proveitosa (um ponto para don Fernando Landgraf pela dica). O duque de Vértigo (título literário-nobiliárquico concedido por Javier Marías a Sebald em 2000) tem mesmo genuíno valor. [início 23/10/2011 - fim 25/10/2011] 
"Vertigem: Sensações", W.G. Sebald, tradução de José Marcos Macedo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2008), brochura 14x21 cm, 199 págs. ISBN: 978-85-359-1334-7 [edição original: Schwindel: Gefühle, (Eichborn Verlag) Frankfurt/Deutschland, 1990]

Um comentário:

charlles campos disse...

No livro, Sebald se refere a Beyle como "o maior dos escritores". Há mesmo um tom forte stendhaliano na escrita de Sebald, principalmente neste livro. Me recordou muito o prefácio de Stendhal a Cartuxa de Parma, em que ele diz que belos lugares sempre o convidou a se sentar e escrever. Sebald mesmo_ ou o seu narrador_ se senta em estações, cafés, em campos abertos, puxa seu caderninho pautado, e escreve. Uma hora diz à dona da pensão que escreve, talvez, um romance policial.

Mas não achei tão marca registrada de Sebald essa confluência de estilos, entre introspecção e geografia. Gosto muito de Sebald, mas para mim ele faz parte de um grupo de escritores memorialistas, muito afeitos à interpretação estóica da História, que levam a mesma marca d`água estilistica. Cees Nooteboom, em Dia de Finados, o Vila-Matas, o Javier Marías. Há mesmo um escritor caribenho que professou grandiosamente esse estilo, o V.S. Naipaul, com Um Caminho no Mundo, e, analisando as ruínas pós-coloniais da Inglaterra, O Enigma da Chegada.

E, quando você ler Danúbio, vais encontrar um outro Marco Aurélio das letras, que é o magnífico Claudio Magris.