terça-feira, 19 de março de 2013

sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio

Em "Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio" encontramos 18 discursos e palestras de Herta Müller, escritora romena radicada na Alemanha que recebeu o Nobel de literatura em 2009. Dois dos discursos são exatamente aqueles proferidos em distintas cerimômias de entrega do Nobel. Metade dos demais correspondem a agradecimentos pela outorga de vários prêmios literários (a maioria alemães), a outra metade a palestras feitas em congressos e eventos. Treze textos são recentes, da segunda metade dos anos 2000, cinco ainda dos anos 1990, mas nada muito remoto (o texto mais antigo tem menos de 18 anos). De qualquer forma há alguma repetição de argumentos e histórias, de metáforas e figuras de linguagem, reiterações nas suas lembranças e em suas terríveis denúncias. Herta Müller nasceu no Banato, uma região do oeste romeno (e do sul da Hungria e leste da Sérvia) bem definida geograficamente desde os tempos dos romanos e que ficou longos anos sob controle do Império Otomano, e posteriormente dos Habsburgos, do século XV ao XIX. A partir do final da primeira grande guerra esta região tornou-se majoritariamente um enclave de língua e cultura alemã entre povos eslavos. Após a segunda grande guerra a Romênia ficou sob a zona de influência da União Soviética e viveu sob uma tosca ditadura durante quase cinquenta anos. Os cidadãos do Banato de origem alemã foram particularmente perseguidos nos anos de ditadura comunista que lá se instalou. Herta Müller nasceu em 1953 e conseguiu emigrar para a Alemanha apenas em 1987. Dizer que ela emigrou é um eufemismo, pois os descendentes de alemães eram basicamente vendidos pelo governo romeno aos alemães (doze mil marcos por pessoa, preço da tabela comunista dos anos 1980). Em seus discursos acompanhamos a análise de questões linguísticas do romeno e do alemão; trechos quase líricos onde ela fala da neve, dos campos, dos pássaros e dos lobos; relatos sobre a vida e a obra de autores como Jürgen Fuchs, Oskar Pastior, Elias Canetti, Theodor Kramer, Emil Cioran e Max Blecher; lembranças do pai (que foi oficial da SS), da mãe (que passou cinco anos escravizada pelos russos) e dos avós; mas sobretudo suas reflexões sobre o impacto do controle comunista sobre os indivíduos. Neles Herta Müller fala da loucura que foram os anos da ditadura comunista romena; do enorme esforço do aparelho do estado para controlar as coisas mais simples da vida dos cidadãos; do preço incalculável em vidas e recursos financeiros desperdiçados naqueles dias; do grotesco que eram os argumentos dos senhores do poder; da lógica perversa dos tiranos; das legiões de ignorantes subservientes, que são o esteio de todas as ditaduras; das técnicas de tortura e encarceramento; dos sofrimentos que sua mãe e tantos outros daquela geração experimentaram em campos de trabalhos forçados na URSS. Nos textos que correspondem aos anos posteriores à queda do Muro de Berlin Herta Müller denuncia a continuidade dos serviços de espionagem e tortura estatal romena, inclusive utilizando-se de remanescentes do comunismo.As imagens que ela invoca são sempre poderosas (o livro chega a ser tóxico, pela surpreendente, quase cruel, dissecação do comportamento humano). Para ela a Romênia é mesmo o país do fracasso universal. Nota Bene: Tenho lá minhas dúvidas, há legiões de entusiastas do stalinismo aqui no Brasil, prontos para prender, torturar e matar qualquer indivíduo que não se submeta a seu dirigismo, suas mentiras, suas loucuras. O Brasil tem uma relação com a estupidez e o atraso, uma vocação para a escravidão mental, que poderiam vir a surpreendê-la, mas é melhor deixá-la em paz com seus fantasmas pessoais.
[início: 08/03/2013 - fim: 15/03/2013]
"Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio", Herta Müller, tradução de Claudia Abeling, São Paulo: editora Globo (coleção Biblioteca Azul), 1a. edição (2012), 14x21 cm., 244 págs., ISBN: 978-85-250-5160-8 [edição original: Immer Derselbe Schnee und Immer Derselbe Onkel (Munich: Carl Hanser Verlag) 2011]

3 comentários:

charlles campos disse...

http://charllescampos.blogspot.com.br/2013/03/notinha.html

vera maria disse...

Um abraço pra você, leitor voraz! :))
clara

vera maria disse...

Aguinaldo, sempre um cavalheiro, respondendo lá o que eu comentei cá :)) Não sabia que vc ainda lecionava, pensei que já havia conquistado o prêmio da aposentadoria ::) Eu considero assim meu estado atual de aposentada, acho muito bom não precisar mais participar de reuniões de departamento, sobretudo.
grande abraço, boas leituras,
clara