O sul-africano J.M. Coetzee recebeu o Nobel de literatura em 2003. Seus livros, que já eram admirados e discutidos naquela época, tornaram-se best-sellers desde então. Trata-se sim de um grande escritor e ensaista (seus ensaios reunidos em "Inner workings" e "Costas Estrañas" são mesmo poderosos e seminais). Já li vários romances dele. Meus favoritos são "Disgrace", "The Master of Petersburg", e a trilogia "Boyhood", "Youth" e "Summertime", mas esta lista já é demasiado longa para merecer algum valor. "A infância de Jesus" é o livro mais recente dele, publicado neste 2013 mesmo, pois hoje em dia as grandes corporações editoriais trabalham sempre otimizando esforços, inclusive os de divulgação, global, maciça e imediata, quase sempre. Em "A infância de Jesus" Coetzee nos apresenta um lugar inominado, uma distopia amalucada, onde um sujeito de meia idade (Simão) tem sobre seus cuidados um garoto (David) que perdeu-se dos pais. Neste lugar a sociedade está organizada como numa coletividade socialista, mas sem violência física, grades ou repressão. De qualquer forma o dia a dia das pessoas é monótono, a alimentação repetitiva, o trabalho irrelevante, as leis e a burocracia ininteligíveis, o passado de cada indivíduo obrigatoriamente esquecido. Há paralelismos com "O admirável mundo novo", de Huxley, mas a influência maior me parece ser "Cândido", de Voltaire. Um "Cândido" às avessas na verdade, apesar da sátira ser também dirigida contra o otimismo (ou antes a alegria) das admiráveis criaturas que vivem naquele lugar inventado por ele. Com essas influências Coetzee produziu uma alegoria, um mágico realismo, um enigmático romance de fantasia. Nele faz releituras de
passagens bíblicas e literárias (algo do Don Quijote e de alguns contos
de fada), discute temas filosóficos importantes (a natureza do mal, a
origem da cognição, a lei do terceiro excluído), prende o leitor ao destino daqueles personagens tão bizarros. Não é exatamente o
livro dele que mais me impressionou, mas não se pode negar ser algo
muito bem escrito, que se deixa ler rapidamente e nos faz
refletir sobre temas interessantes. No melhor dos mundos possíveis de Coetzee o leitor acompanha cenas das agruras do aprendizado do garoto (que já sabe tudo, como qualquer criança imagina saber), do ilógico amor materno que se instala em uma mulher (como na concepção imaculada de Maria, óbvio), da abnegação com que Simão experimenta sua paternidade postiça, da irracionalidade dos feitos e comportamento de todos os personagens. O mantra final de Coetzee parece sugerir que somente a fuga pode dar algum sentido à vida. Mas esta fuga deverá ser permanente, pois a boçalidade humana sempre nos acompanhará, é mesmo algo intrinsicamente nosso.
[início: 19/05/2013 - fim: 21/05/2013]
"A infância de Jesus", J.M.Coetzee, tradução de José Rubens Siqueira, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., págs. ISBN: 978-85-359-2257-7 [edição original: The Childhood of Jesus (London: Jonathan Cape/Random House) 2013]
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