Em algum ponto de "O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação" o narrador de Haruki Murakami diz: "A memoria pode ser escondida, mas a história não pode ser mudada". Esta afirmação explica um tanto o projeto de Murakami neste livro: fazer com que um sujeito descubra sua história a despeito de sua memória já ter sido convenientemente sublimada, esquecida, modificada, fantasiada. É um livro curioso. Dele só havia lido o bom "Do que eu falo quando eu falo de corrida", mas tratava-se de um registro autobiográfico, a descrição de sua obsessão por corridas de longas distâncias (e a relação deste tipo de exercício vigoroso com a arte da ficção, com sua imaginação literária). Um sujeito, o nominado Tsukuru Tazaki do título, engenheiro eficiente e produtivo de seus trinta e seis anos se envolve com uma garota dois anos mais velha (igualmente eficiente e produtiva) e é persuadido por ela a descobrir os detalhes de seu passado remoto, coisas que aconteceram quando ele tinha pouco mais de vinte anos e que o incomodam e de alguma forma o impedem de ter um relacionamento plenamente satisfatório com ela. Assim motivado Tsukuru canaliza este incômodo numa espécie de jornada do herói, de um processo de auto conhecimento (de forma que esse é um quase legítimo Bildungsroman - digo quase pois o final do livro é artificial demais para o meu gosto). Ele parte para reencontrar quatro amigos que eram muito próximos dele na primeira juventude e que se afastaram dele repentina e definitivamente, sem explicarem as razões dos aborrecimentos que justificariam o ostracismo a ele imposto. É um livro que se lê numa sentada, bem escrito, que mantém todo o tempo a curiosidade do leitor por seu desfecho, mas que incomoda de um jeito estranho. Tudo parece mágico demais, artificial demais, esquemático demais. Mesmo considerando que eu não tenho a menor idéia de como são os japoneses contemporâneos (ou seja, não sei como se comportam, como experimentam o mundo, a tecnologia, as paixões e os dramas que todos nós, viventes deste amargo início de século XXI experimentamos) fiquei com a impressão de que seus personagens não reais, não são válidos, não têm estofo. Paciência. Inegavelmente trata-se de um escritor que domina totalmente o processo criativo, que é capaz de oferecer ao leitor um tempo agradável de imersão num mundo novo, num mundo literário que conforta e inspira, mas ao terminarmos o livro sobra pouco sobre o que falar. Talvez Murakami esteja vendo algo específico de nosso tempo, que eu - o menor dos anões desta paróquia - seja incapaz de compreender. Sendo assim, só me resta registrar que por enquanto ainda é um enigma o fato dele estar sempre nas primeiras colocações das casas de apostas para o prêmio Nobel de literatura. O mundo é mesmo um mistério (o mundo literário um tanto menos intangível, mas ainda assim impenetrável). Preciso ler outras coisas deste sujeito.
[início: 15/12/2014 - 16/12/2014]
"O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação", Haruki Murakami, tradução de Eunice Suenaga, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Grupo Prisa, 1a. edição (2014), brochura 15x23,5 cm., 326 págs., ISBN: 978-85-7962-337-0 [edição original: Shikisai o motanai Tazaki Tsukuru to, kare no junrei no toshi / 色彩を持たない多崎つくると、彼の巡礼の年 (Tokyo: Bungeishunju/Tsai Fong Books) 2013]
Nenhum comentário:
Postar um comentário