Ano passado, após ter lido o seminal "Lições de literatura russa", procurei outros conjuntos de notas de aula de Vladimir Nabokov. Por sorte encontrei dele esse "Curso sobre el Quijote", pois nesse 2015 se comemora os 400 anos do lançamento da segunda parte do Quixote (uma edição comemorativa acabou de ser publicada pela Real Academia Española). Trata-se de um livro que foi preparado a partir das aulas ministradas durante o período sabático em que Nabokov passou na Harvard University, em Massachusetts, no outono/inverno de 1951/52 (Nabokov manteve uma posição permanente na Cornell University, em New York, entre 1941 e 1959). Nesta edição, preparada pelo mesmo Fredson Bowers que organizou as "Lições de literatura russa" citadas acima, estão incluídos trechos generosos do texto original de Cervantes utilizados por Nabokov para apoiar/ilustrar suas considerações e opiniões (algo em torno de 40% do total do livro). Nabokov é um professor aplicado, não utiliza manuais ou resumos temáticos, combate tanto argumentos de outros acadêmicos quanto as opiniões dos leitores comuns. Ele busca no texto original as passagens que explicam a coesão da estrutura do romance; o processo de construção dos personagens; a técnica de Cervantes de isolar grupos de personagens para desenvolver um tema específico; as interpolações incluídas no romance (como "A novela do curioso impertinente" e a história de Cardênio e Lucinda); os momentos em que o texto fica obscuro; os lances geniais e também as falhas, os defeitos do livro. Nabokov aprecia muito a força dos diálogos de Cervantes, mas lamenta suas descrições da paisagem natural. O leitor perde, claro, o encantamento que a presença e a voz de Nabokov deveria produzir nas aulas, mas pode acompanhar no texto as ironias e o bom humor dele (ri um bocado durante a leitura). O livro está estruturado em três partes. Na primeira ele apresenta suas idéias sobre o quê é um romance; fala da fortuna crítica e dos mitos literários associados ao livro; detalha os componentes estruturais do livro: fragmentos de velhos romances de cavalaria, refrãos e jogos de palavras, diálogos teatralizados, pastiches de poemas, descrições pastoris - arcádicas, trapaças e ardis com efeitos cômicos; explica como Don Quixote e Sancho Pança perdem contato com o livro que os fez nascer e vagam hoje pelo mundo, ganharam vitalidade com o tempo, tornando-se únicos; contextualiza aquilo que para ele é o mais exasperante: a naturalidade dos atos violentos e cruéis (tanto físicos quanto psicológicos) distribuídos no livro; fala do falso cronista da história (o árabe Cide Hamete Benengeli), de Dulcinéia e da Morte; apóia (talvez o certo seja dizer que brinca com a idéia de apoiar) a possibilidade da segunda parte espúria do Quixote (publicada em 1614 por um sujeito que usou o pseudônimo de Alonso Fernández de Avellaneda) ter sido escrita pelo próprio Cervantes, como forma de fazer propaganda e aumentar as vendas da verdadeira segunda parte, publicada em 1615 (sobretudo por ser, segundo ele, literariamente falando, a melhor solução para muitas questões estruturais do livro). A segunda parte é uma espécie de jogo, onde Nabokov faz um censo de todas as batalhas nas quais se envolveu don Quixote (tanto as físicas quanto as morais, ou seja, aquelas em que ele apenas argumenta e não se envolve em combates). Ele faz uma analogia com as regras de contagem de pontos do tênis (pontos, games e sets), games, matches) para chegar a um curioso 6-3, 3-6, 6-4 e 5-7, que dá um empate em número de games e sets. Todavia don Quixote perderia, pois não chegaria a jogar um quinto set, perdendo para a morte. É um tanto forçado, mas tem lá sua graça, principalmente porque Nabokov descreve detalhadamente as circunstâncias de cada uma das vitórias e derrotas. "Narración y Comentario", a terceira parte do livro é composta de resumos temáticos de cada um dos 126 capítulos (somando as duas partes do livro). Em geral ele descreve os fatos do capítulo e transcreve uma passagem que lhe pareceu interessante ou bem escrita. Segundo Fredson Bowers, na apresentação, esta terceira parte não era discutida pormenorizadamente nas aulas, apenas eventualmente utilizada por Nabokov quando a discussão sobre o livro merecia algum detalhamento ou explicação, uma espécie de complemento ou expansão daquilo que era discutido nas aulas. Está incluído num apêndice a transcrição do material que Nabokov distribuía aos alunos com trechos dos dois livros que mais influenciaram Cervantes na composição do Quixote: "Le morte d' Arthur", de Thomas Malory e "Amadís de Gaula", de Vasco Lobeira. Os manuscritos originais de Nabokov estavam distribuídos em seis cadernos, correspondentes as seis palestras (lectures) ministradas. Enfim, Nabokov defende que o Quixote não é o melhor romance já escrito mas que o gênio de Cervantes e sua excepcional intuição artística deu a seu personagem central uma vitalidade incomum, algo que apenas muito raramente um autor alcança fazer. Em tempo: O governo espanhol prepara para o ano que vem muitas festividades por conta dos 400 anos da morte de Cervantes. Talvez seja a hora de reler o Quijote, voltar à Castilla-La Mancha, cruzar uma vez mais aquelas planícies áridas, comer queijo manchego e tomar vinho barato (não, melhor tomar um bom vinho barato). Vale.
[início: 01/09/2015 - fim: 09/10/2015]
"Curso sobre el Quijote", Vladimir Nabokov, tradução de Maria Luisa Balseiro, Barcelona: Ediciones B (Zeta Bolsillo: Biblioteca Ana Maria Moix), S.A., 1a. edição (2009), brochura 12,5x20 cm., 412 págs., ISBN: 978-84-9872-309-0 [edição original: Lectures on Don Quixote (New York: Harcourt Brace Jovanovich: New York) 1983]
Nenhum comentário:
Postar um comentário