Semanas atrás, num daqueles espasmos pretensamente importantes de nossa industria cultural, houve um breve debate sobre os limites legais (na acepção jurídica do termo) da ficção e autoficção praticada por alguns escritores brasileiros contemporâneos. Logo alguma outra tonteria entrou na cardápio das redações e das mídias sociais e não se falou mais sobre autoficção. Historicamente falando a crítica literária atribui a um escritor francês, Serge Doubrovsky, a paternidade desse estilo de escrita onde se combina elementos de ficção e de autobiografia. As classificações servem sim para propósitos didáticos mas quase sempre restringem demais os conceitos. Paciência. Por mim todo e qualquer texto inventado e produzido pelos homo sapiens sapiens (desde que rastejamos assustados para fora de uma caverna) é sempre ficção e autobiografia. Claro, há aqueles que acreditam em origens e/ou inspiração divina e/ou mágica para muitos textos, mais não precisamos ser hermeneutas praticantes para interpretar que de uma narrativa se sabe apenas dos feitos e dos desejos dos homens. Natalia Ginzburg nos adverte (sim, adverte), logo na primeira página desse seu "Léxico familiar" que os lugares, fatos e pessoas nele são reais, não há nada inventado, mas que há lacunas suficientes no livro para que ele não possa ser lido (e ela sugere que deva ser assim) como um romance canônico, sem exigir dele nada que um romance não possa oferecer. Não há datas em seu livro, mas sabemos que ela nasceu em 1916, filha caçula com quatro irmãos, e que morreu em 1991. O que está registrado no livro começa com ela ainda menina, com dez, onze anos, e segue até meados dos anos 1950, quando de seu segundo casamento. O que no livro está registrado é basicamente o modo de vida de uma família burguesa e sofisticada (cujo pai é um professor universitário de origem judaica e cuja mãe é católica). Ela conta (discretamente seria uma definição, mas a imagem que tenho é que ela escreve como quem fala sem elevar nunca o tom de voz) as formas de relacionamento entre os membros desta família e suas conexões com uma sociedade italiana que se transformava rapidamente, sobretudo por conta das duas grandes guerras do século passado, da luta contra o fascismo e das discussões sobre a viabilidade da implantação do comunismo na Itália que se segue à guerra. Qualquer um que lembre de suas histórias familiares irá identificar vividamente os personagens/parentes de Natalia Ginzburg: o pai irascível porém amoroso; a mãe discreta e sábia; os irmãos que parecem ter sido trocados na maternidade, por terem temperamento demasiadamente distinto; os amigos algo misteriosos que se fundem à rotina familiar. Irá também reconhecer aquelas histórias típicas que nunca são contadas exatamente da mesma forma; os segredos que parecem importantes e depois se sabem ridículos; as tragédias pessoais que não se pode transferir ou purgar; o ruído nas conversações (tanto o literal quanto o metafórico); a força dos livros, da educação e da cultura. Muito bom. Fiquei até com vontade de reler "As pequenas virtudes" mas não, há outros livros dela por aí. Lembrei de muitas coisas lendo "Léxico familiar". Lembrei do Elias Canetti, do Pedro da Silva Nava, do Proust, dos tempos de São Bernardo, de uns primos distantes de meu pai em Ouro Preto, das histórias que meus pais me contaram (mas, aí de mim, que já se perderam ou se fundiram a outras, muitas delas inventadas em terras distantes, embaralhadas agora em minha memória.) E por fim Natalia Ginzburg me fez lembrar de um sujeito que num dos filmes do Woody Allen dizia: "A felicidade humana não faz parte do desenho da criação, (...) somos nós apenas, com nossa capacidade de amar, que damos sentido ao universo indiferente".
[início: 14/09/2015 - fim: 28/09/2015]
"Léxico familiar", Natália Ginzburg, tradução de Homero Freitas de Andrade, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2009), capa dura 16,5x22,5 cm., 240 págs., ISBN: 978-85- 7503-879-6 [edição original: Lessico famigliare (Turim: Einaudi) 1963]
Nenhum comentário:
Postar um comentário