De todos os bons trabalhos que já li de Alfonso Zapico esse é o mais pessoal, mais intimista, mais especial. São onze histórias curtas, onde ele faz uma espécie de balanço ou ajuste de contas, tanto de sua vida, sua história pessoal, quanto de seu ofício, sua arte. "Cuadernos d'Itaca" está escrito em asturiano, língua que alguém que entenda o português de Portugal e algo do espanhol da Espanha acaba entendendo também, com um justo e necessário esforço. Abundam os "X" galegos e os "LL" catalães (mas só mesmo um linguista para me ensinar como se deve ler essa língua). De qualquer forma aprendi que pelo menos 400 mil pessoas a dominam bem, ao menos como segunda língua. Como vasto é o mundo. Bueno. Vivendo há muitos anos na França Zapico retorna de férias a sua Astúrias natal e sente-se um estrangeiro. Ele se inspira nas viagens de Ulysses pelo mar Egeu para descrever algo de sua "Señardá" (quem diz a palavra que descreve saudade só existe em português não conhece asturiano). Umas gaivotas lhe mostram o caminho. O inspiram a recolher de seu caderno de rascunhos as histórias que contem algo de sua terra. Zapico escreve sobre seu tio Milio, que perdeu o emprego em uma fábrica estatal de equipamentos bélicos; sobre sua decisão de emigrar ao norte, à França; sobre sua casa editorial (a Astiberri), como se fossem uns piratas no mar revolto da edição de livros; faz uma sociologia selvagens dos hábitos franceses; descreve as dificuldades de uma mulher espanhola em conseguir cargos de comando num mundo europeu machista; fala do fechamento das minas asturianas de carvão e o impacto disto na sociedade local; filosofa sobre os tempos modernos, do feroz neoliberalismo que compromete o futuro de uma sociedade que se imaginava sempre ser possível prosperar; conta a história de uma senhora de quase cem anos que emigrou como ele para a França nos tempos da guerra civil espanhola; fala da experiência de viver uns dias na Polônia, num evento literário, um país tão complexo como o seu (afinal, como ele diz, parafrasendo Tolstói "todos os países que parecem felizes são iguais, mas todos os países infelizes o são cada um à sua maneira". Há que se respeitar um autor que usa sua arte para interpretar honestamente o mundo e o tempo que vive (não há um pingo de autoindulgência, comprometimento ideológico ou partidário, cabotinismo ou hipocrisia em suas histórias - cousa que muitos escritores brasileiros se aferram em fazer, imaginando que todos seus eventuais leitores são incapazes de pensar por conta própria). Enfim, como já nos ensinou Auden (traduzido por José Paulo Paes e certamente lido pelo Zapico), todos nós em algum momento nos perguntamos: "Para onde aponta esta jornada, que o vigia do cais, / Parado sob a sua má estrela, inveja tão amargamente, / Enquanto as montanhas nadam para longe em braçadas lentas, calmas, / E as gaivotas abdicam seu vôo? Promete acaso uma vida mais justa?”. Evoé Zapico, evoé.
[início: 18/08/2016 - fim: 25/09/2016]
"Cuadernos d'Itaca", Alfonso Zapico Fernández, Oviedo/Espanha: Ediciones Trabe, 1a. edição (2014), capa-dura 24x30 cm., 89 págs., ISBN: 978-84-8053-747-6
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