As vinte narrativas autobiográficas desse "El ojo castaño de nuestro amor" devem também um bocado para a invenção. Se elas brotaram da memória passaram também pelo filtro brincalhão de um escritor que sabe as regras de seu ofício e as infinitas formas de manipular um leitor. Cartarescu chega aos cinquenta anos e precisa fazer uma espécie de balanço, dar contas de suas experiências mais transformadoras. Em quase todas há uma feroz ironia, um olho que pisca buscando cumplicidade (talvez solidariedade antes que cumplicidade, mas nunca condescendência), encontramos o desnudamento de um sujeito que sabemos estar de alguma forma nos ludibriando, como faz um mágico num circo. Os temas são variados. Cartarescu fala de uma ilha que desapareceu no Danúbio (por conta de uma hidrelétrica) que inspirava seus sonhos de garoto; da gênese de seu primeiro "eu" poeta; conta a vida de Ovídio, o poeta romano exilado em Tomis; partilha seu assombro com os resultados da queda do regime ditatorial de Ceausescu; fala do desejo juvenil em possuir uma legítima calça Levi's; dos efeitos do café sobre ele e a gênese de seu primeiro livro em prosa, "Lulu"; da história de como conseguiu escrever "Levantul", seu poema épico; faz um censo acadêmico sobre a produção poética contemporânea da Romênia; analisa o "Lolita", de Nabokov, e explica como os leitores são os grandes senhores da interpretação de um texto; fala de seu amor aos livros; conta a história de sua mãe e a de uma namorada (de quem roubo sonhos para transcrevê-los em seus livros); descreve a juventude e os aborrecimentos da velhice; explica o que entende sobre "ser europeu". Ri-se das situações cômicas descritas por ele, típicas de um país onde só a censura e o controle social explicam como somos afinal capazes de tolerar comportamentos esdrúxulos. E ri-se também dos momentos mais amargos recriados por ele, aqueles mais graves, pois a função do riso também é amortecer o efeito das dores e das experiências ruins (e eventualmente transformá-las em literatura, como não?).
[início: 19/09/2016 - fim: 02/10/2016]
"El ojo castaño de nuestro amor", Mircea Cartarescu, tradução de Maria Ochoa de Eribe Urdinguio, Madrid: editorial Impedimenta, 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 208 págs., ISBN: 978-84-16542-32-1 [edição original: Ochiul caprui al dragsotei noastre (Bucaresti: Cartea Romanesca), 2015]
Um comentário:
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