sexta-feira, 4 de setembro de 2020

estudo sobre a carne humana

De Deonísio da Silva, respeitado escritor, professor e filólogo, só conhecia o bom livro de referência "De onde vem as palavras", que partilha espaço em minha biblioteca com os Houaiss e os Aurélios, o Oxford e o Cambridge, os Câmara Cascudo e um punhado de outros mais. Semanas atrás, ouvi uma transmissão do "Universidade aberta", mantido pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre e coordenado pelo professor Sergius Gonzaga, no qual o Deonísio da Silva era o entrevistado. Aprendi um bocado, sobre sua vida, carreira acadêmica e produção literária. Descobri que o sujeito já publicou mais de trinta volumes, entre romances, contos e ensaios (e que já foi várias vezes premiado). Curioso, procurei alguns livros, e resolvi começar pelo mais antigo que encontrei. Em "Estudo sobre a carne humana", de 1975, estão reunidos quatorze contos curtos. Neles transparece um fino leitor de tipos humanos, alguém que sabe incluir nas narrativas, sem sufocá-las, passagens das mitologias, histórias bíblicas, alguma etimologia, curiosos registros de linguagem popular e, sobretudo, o clima tenso e hipócrita dos tempos repressores da ditadura militar. Ele parece navegar por um mar de censores, cuidando o tom, mas sem comprometer as verdades de suas histórias. Há também muito humor nas histórias, que se passam tanto no mundo urbano, citadino, quanto no mundo do campo, periférico, das pequenas cidades. Os temas dos contos são variados. Alguns flertam com causos ou lendas urbanas (a do americano que ao fazer uma pesquisa médica no campo é visto como um vampiro no imaginário do povo, a do destino do dinheiro talvez escondido por um fazendeiro de origem italiana, a do médico inepto que por acaso descobre uma doença real em um paciente, a do diplomata que faz parecer que sabe muito sobre o mundo das mulheres, a do amigo estudante que volta de Paris e conta histórias em um bar, a de uma velha senhora que morre queimada, a de um bastardo "alemão" do norte brasileiro que se entrega a bebida). Outros contos tratam do ambiente escolar, tanto das seculares quanto das confessionais (são onde o sarcasmo domina a narrativa, demonstrando como a experiência pessoal pode se metamorfosear em literatura sem ofender ninguém). Como já registrei acima, o que se destaca em todos os contos é a capacidade de criar personagens (além de provocar o leitor com deliciosos jogos verbais). Lembrei muito do Elias Canetti, de um livro dele onde são apresentados perfis de pessoas, associados a suas características físicas ("O Todo ouvidos"), que li há décadas. É isso, vamos seguir em nosso baile macabro de pandemia. Vale!
Registro #1564 (contos #182)
[início: 13/08/2020 - fim: 18/08/2020]
"Estudo sobre a carne humana", Deonísio da Silva, Curitiba: Editora Hoje, 1a. edição (1975), brochura 12x19,5 cm, 83 págs., sem ISBN

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