sexta-feira, 19 de junho de 2009

el siglo

Um grande autor sempre produz livros que conversam entre si. Neste "El siglo", publicado originalmente em 1983, acompanhamos a história de um sujeito chamado Casaldáliga, tio de um cantor lírico chamado Léon, que é personagem do "El hombre sentimental", que li recentemente e resenhei aqui. Cabe dizer que este último (el hombre sentimental) é um livro que foi escrito e publicado em 1986. Fui eu quem li na ordem errada, fazer o quê? Mas isto não é um problema, o tema, o tratamento e o andamento da trama nos dois livros são muito diferentes, não há prejuízo em lê-los fora da ordem em que foram publicados. Em "El siglo" León já é um cantor lírico de muito sucesso mas mora com sua mulher na mansão de seu tio, um velho juiz aposentado. Tanto Léon quanto alguns outros parentes e vizinhos esperam a morte do velho juiz para ganharem sua cota de uma inimaginável herança. O livro tem dois narradores que se alternam. Nos capítulos ímpares o velho juiz reflete sobre sua fortuna, sua história, sobre os interesses dos agregados à ele, sobre seus dilemas morais e suas escolhas. Nos capítulos pares um narrador que imagino ser o secretário particular de Casaldáliga, Lemarquis, conta cronologicamente a vida do juiz, mas desta vez sem a censura que aquele usa quando narra e descreve os fatos mais importantes de sua vida. O velho juiz está praticamente senil quando narra sua história e nestes capítulos temos um vivo exemplo de quanto o romance "Leite derramado" de Chico buarque é mesmo pedestre no uso deste truque narrativo. Os lapsos, as omissões, os circunlóquios e a psique doentia do narrador são muito bem descritas por Javier Marías. Soberbo texto. Na vida do velho juiz há muitos momentos onde ele não soube decidir-se em questões capitais, mas uma escolha em particular, a de optar pelo lado de Francisco Franco um pouco antes do final da guerra civil espanhola e tornar-se um delator e colaborador franquista é a que mais o atormenta (não por arrependimento, mas pela constatação que ele próprio pouco fez para ser senhor de sua decisão). Estas edições do selo Debolsillo são muito boas (e baratas), incluem sempre um bom prólogo, assinado por uma especialista em Marías chamada Elide Pittarello e, como neste caso, curtos ensaios do próprio Marías contando os sucessos do livro após a edição. Ele é muito analítico e honesto na apreciação da história de seus livros. Enfim, gostei muito deste livro (como de resto tenho gostado de ler Javier Marías). Uma frase em especial me marcou desta vez; "Esas gentes pasan por la vida como turistas en grupo por un museo, del que sólo recordarán las obras de las que hubiera a la salida reproducciones en venta." Assim é mesmo a maioria das gentes, neste nosso medíocre mundo deste início de século XXI. [início 18/05/2009 - fim 25/05/2009]
"El siglo", Javier Marías, ediciones Debolsillo (1a. edição) 2007, brochura 13x19, 247 págs. ISBN: 978-84-8346-222-5

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