quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

em alguma parte alguma

Ferreira Gullar é um sujeito de seus oitenta anos que ainda "inventa o que dizer", que compreende que a vida provisoriamente permite que ele encontre poesias dentro de si. Este "Em alguma parte alguma" é seu mais recente livro de poemas publicado (o livro saiu um par de meses depois do comunicado de que ele vencera o prêmio Camões neste ano, o ano de seus oitenta anos, cousa boa). A edição é muito bem cuidada. O livro inclui uma bibliografia completa de sua obra e dois textos assinados por especialistas em Gullar: Alfredo Bosi e Antonio Carlos Secchin. Os poemas são variados, na forma e na extensão. Há temas recorrentes: a gênese mesma da poesia, a desordem, os sentidos, a natureza, gatos, ossos, memória, a rua duvivier, a podridão e os ossos, a pedra. Uma série longa, com onze poemas, fala do universo e da ciência, das escalas das coisas no mundo. Uma outra, menor, com seis poemas, fala de artistas plásticos e outros poetas. Um poeta forte sempre fala de outros poetas, mesmo quando não explicita a conversa. Alfredo Bosi cita em seu prefácio como Gullar se reinventa de tempos em tempos, como se inquieta e não repete fórmulas em seu ofício, mas, ao mesmo tempo, cita como estes dois temas, que ele chama de "visão cósmica" e "evocação dos mortos", são de longa data temas caros à Gullar. A memória da poesia é algo que se deve construir desde pequeno, não é fácil formá-la se já não vemos o mundo com os olhos de menino. Paciência. O livro tem vários poemas que me tocaram, que reli gaiato, coisas realmente poderosas, que fazem um sujeito pensar na vida, com calma, sem açodamentos, como sempre deve ser. Em algum ponto ele nos lembra que "de tais espantos somos feitos." Que espanto? Cada leitor vai encontrar o seu. Gullar encerra o livro com dois poemas mais longos, que falam também da morte: um sobre Rainer Maria Rilke, um passeio do poeta e da morte pela Alemanha de Rilke; um outro sobre uma viagem de volta a Santiago do Chile, lugar de lembranças boas e lembranças bem amargas, cruéis, que termina com algo que lembra uma frase latina que eu gosto muito (nec spe, nec metu). Um assombro. Muito bom mesmo. Por fim, como se não fizesse parte do livro, encontramos um poema manuscrito ("uma corola" se chama o pequeno). Dele se tirou, se desabrochou, o nome do livro inteiro: em alguma parte alguma. Um poema de onde se pode inferir que sempre haverá vida desabrochando sem pudor em algum lugar, um poema onde se diz que a potência de vida fulge sempre em algum lugar. Ulalá. Que grande livro. [início 03/11/2010 - fim 30/11/2010]
"Em alguma parte alguma", Ferreira Gullar, editora José Olympio, 1a. edição (2010), brochura 13,5x21 cm, 142 págs. ISBN: 978-85-03-01095-5

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