Num romance onde texto e desenhos se alternam, Joca Reiners Terron conta uma história curiosa. Trata-se de uma reflexão sobre a morte. Algo dela lembra coisas do Naked Lunch (do livro de Burroughs e do filme do Cronenberg). Se é que eu entendi bem um sujeito sai da cadeia e no ônibus que o leva para uma grande cidade tem uma idéia original. Para entreter os dois filhos de uma mulher que está sentada a seu lado ele inventa um super-herói, um personagem de histórias em quadrinhos, que ele chama de homem escada. A idéia se revela promissora. Ele consegue editar um livro com este personagem por uma editora importante. Faz muito sucesso, torna-se uma celebridade, casa-se com uma mulher bonita, tem uma filha e cuida de um gato. Um dia, ao voltar para casa após ficar vagabundeando por bares da cidade, vê um prédio em chamas e assiste, aterrorizado, a morte daquela mulher e os dois filhos que ele conheceu quando saiu da cadeia (e que lhe inspiraram seu super-herói). Ele torna-se uma pessoa violenta, abusa da bebida e de sexo casual. Acaba sendo abandonado pela mulher. Já bastante debilitado ele descobre que está com problemas sérios de saúde (ele expele chips de computador junto com as fezes). O que escrevi acima corresponde apenas a um quarto do romance. As outras três quartas parte da história envolvem a narrativa da consciência de um outro sujeito, que está a espera de um transplante de fígado no exterior. Ficamos sabendo que o cartunista da primeira parte é o doador do fígado, não exatamente um doador voluntário. Aparentemente ele foi enganado por médicos e levado a uma clínica que torna sujeitos idiotas como ele matéria prima do mercado de tráfico de orgãos. A consciência deste cartunista volta a se manifestar através da lembrança de suas misérias e desgraças, enquanto seu corpo é preparado para o transplante. Outros orgãos de seu corpo são retirados, veremos depois. A memória do super-herói, homem escada, se esvai com ele. Descobrimos que o antigo empregador do cartunista (o dono da editora) é provavelmente dono da clínica onde foi feito o transplante (e provavelmente se relaciona com sua ex-mulher e sua filha). Os bandidos sempre ficam com a mocinha no final dos bons filmes. O sujeito transplantado (se é que o foi), morre. É cremado, suas cinzas esquecidas pela mulher em um parque. Sua mulher lamenta-se um tanto, cumpre bem o papel de viúva inconsolável, mas suas lágrimas secam depressa, a perda do marido não é exatamente um fardo. É possível encontrar graça na morte (principalmente se não é a sua). A história de Joca Terron se defende bem e leva o leitor a pensar. Curiosamente, ontem mesmo ele publicou um texto (que também é parte de um romance) corajoso e nada piegas sobre seus problemas de saúde. Parece que de alguma forma as vicissitudes de seus personagens já o assombravam de alguma forma. Talvez ele, diferentemente de seus protagonistas, antecipasse o quanto ficção e realidade podem trocar de sinais, pois seu narrador grafa logo no início do livro: "Somente se aquilo que foi imaginado aconteceu realmente", em resposta a uma pergunta sobre as lembranças serem ou não matéria inventada. Também a realidade tem de ser inventada (já nos disse a gloriosa Isak Dinesen - aprendi isso com Javier Marías). Espero que Joca Terron continue em forma e pronto para nos oferecer mais de seus instigantes livros. [início 23/03/2012 - fim 25/03/2012]
"Guia de ruas sem saída", Joca Reiners Terron, desenhos de André Ducci, São Paulo: Selo Edith, 1a.
edição (2011), brochura 15x20,5 cm, 256 págs. ISBN: 978-859039358-0
Um comentário:
Meio confuso ou é impressão minha? Acho que nunca li o rapaz, mas li o texto citado, ele lembra um pouco Bukovski e aquilo que chamo de 'nostálgicos de Woodstock' :))
abraço, clara
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