O leitor precisa estar de muito bom humor para ler "Mapa dibujado por un espía". Acompanhamos como um cidadão, em uma ditadura, perde lentamente qualquer direito e é progressivamente oprimido, deixando para trás sua auto estima, sua liberdade, seus valores. Somos apresentados a uma história que deve ter se repetido milhares de vezes, com um custo social altíssimo, absurdo, um mundo onde a regra são as prisões aleatórias, mortes seletivas, corrupção e crimes sem fim. Só mesmo um sujeito totalmente idiota ou totalmente canalha pode exprimir algum apreço pelo modelo cubano, louvar de alguma forma o tipo de vida a que foram condenados os habitantes daquele país miserável, onde as pessoas são escravas há tanto tempo dos mesmo senhores que dificilmente conseguirão entender um dia o que é a vida em uma sociedade livre e democrática. Que país desafortunado. Guillermo Cabrera Infante nasceu em Cuba, em 1929. Foi um dos melhores escritores latino-americanos, dono de um estilo em prosa muito particular, autor de Três tristes tigres (um bom romance com influências joyceanas), Mea Cuba (o livro mais sarcástico e divertido sobre um país jamais escrito) e Holly Smoke (uma curiosa história do tabaco e dos charutos). Recebeu o Prêmio Cervantes, uma das maiores distinções para escritores da língua espanhola. Ele participou ativamente da revolução cubana, que levou Fidel Castro e seus amigos ao poder, em 1959. Jornalista e crítico de cinema, trabalhou como editor em revistas (Carteles, antes da revolução e Lunes de Revolución, durante o período em que viveu em Cuba após a revolução, entre 1960 a 1962). Atuou durante três anos como adido cultural na embaixada cubana na Bélgica. Em 1965 tornou-se mais um dentre os exilados cubanos, inimigo de estado jurado de morte, radicou-se em Londres, onde morreu, em 2005. "Mapa dibujado por un espía", um de seus textos póstumos (que têm sido publicados pela editora catalã Galaxia Gutenberg) deve ter sido escrito em 1968 ou 1973. Trata-se de um relato duro, melancólico e realista, dos poucos meses que passou em Cuba, em 1965. Cabrera Infante vai para Cuba apenas para participar do funeral de sua mãe e pensa em voltar rapidamente para a Europa com suas duas filhas, que viviam ali aos cuidados da avó. Todavia ele é retido em Cuba por quatro meses e só consegue sair de lá por um lance de sorte (aliada a um tanto de sabedoria prática). Ele percebe rapidamente que a Cuba que ele conhecia não existia mais. A população já estava dominada mentalmente, controlada através de uma rede extensa de espiões, delações premiadas, censura em todos os meios de comunicação, oferta limitadíssima tanto de comida e vestuário, quanto de bens culturais. Vários amigos seus já haviam caído em desgraça, tornando-se párias sociais. Ao mesmo tempo em que os ditos inimigos do regime ficavam impossibilitados de trabalhar não podiam emigrar, sair do país, o que na prática os condenava a prisão, a loucura e a morte. Cabrera Infante descreve como passa seus dias em Havana tentando conseguir um visto de saída, com ajuda de uns poucos contatos ainda ligados ao regime. Ele vai a cafés e restaurantes, participa de festas, reencontra amigos, fala sem pudor dos relacionamentos sexuais que mantém com várias mulheres que conhece naquele período (apesar de sempre registrar que ama mesmo sua mulher, Míriam Gomez, que continua esperando-o na Bélgica), dissimula com seu luto um envolvimento maior com os grupos de amigos que tentam ainda descobrir formas de resistir ao controle social do regime. O incrível é que a mesma ditadura que Cabrera Infante descreve em seu livro continua hoje no poder, massacrando completamente sua população, obviamente para benefício de uns poucos sujeitos que espoliam e roubam o país há cinquenta anos. Já são duas gerações de cubanos que desconhecem o que é viver em um país democrático, o que é viver com um mínimo de liberdade. Segundo Antoni Munné, que assina uma curta introdução ao livro, Cabrera Infante sempre dizia que trabalhava neste relato dos dias que antecederam seu exílio, mas trata-se obviamente de um texto inacabado. A narrativa do livro termina exatamente no momento em que o avião onde ele está cruza um ponto onde seria impossível a viagem não continuar para a Europa. Ali mesmo, no avião, ele começa a escrevê-lo, mas o texto é bem diferente dos demais que já li dele (onde abundam os jogos de palavras, a erudição, as citações). Talvez o realismo dele se preste a dureza dos fatos que são descritos. Excelente livro, mas não é em qualquer hora que temos estômago e disposição para ler livros assim. Mas, de qualquer forma, trata-se de um livro fundamental, pois existem ainda hoje aqui no Brasil uns tiranetes de plantão, uns proto-fascistas, uns chauvinistas tontos, uns porcos idiotas que defendem alegremente a adoção deste modelo canalha de controle social. Enfim, se a população brasileira não se preparar estes canalhas ainda vão transformar o Brasil numa imensa Cuba. Ai do nós.
[início: 17/01/2014 - fim: 21/01/2014]
"Mapa dibujado por un espía", Guillermo Cabrera Infante, edicíon de Antoni Munné, Barcelona: Galaxia Gutenberg (Círculo de Lectores), 1a. edição (2013), capa-dura 13x21 cm., 399 págs., ISBN: 978-84-15472-76-6
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