Nestas últimas semanas de verão li um bocado de livros de Patrick Modiano, o sujeito que ganhou a última edição do prêmio Nobel. São livros curtos, não exatamente monotemáticos, mas que têm tramas parecidas, sempre urbanas, ambientadas em Paris e que se valem de uma curiosa ambivalência entre um registro pessoal de memórias e a pura invenção literária. Modiano parece querer ensinar que "A realidade precisa ser inventada literariamente", como já disse um dia Isak Dinesen. Em "Dora Bruder" o leitor acompanha uma espécie de arqueologia dos poucos fatos que emergem da vida de uma jovem francesa que provavelmente acabou morta nos campos de concentração nazistas durante a segunda grande guerra. O tom é frio, quase jornalístico, objetivo, mas há lirismo, sentimentos e humanidade em suas reflexões. O narrador do livro, em 1988, lê uma nota curta num jornal antigo, dos tempos de ocupação nazista da França, dando conta do desaparecimento de Dora Bruder. O narrador passa então a procurar indícios de Dora, mas tudo é vago, impreciso, pouco confiável, fragmentário. Ele descobre que Dora havia fugido de um internato e certamente passou um inverno pelas ruas de Paris antes de ser presa e deportada. A lembrança da ativa colaboração de franceses com os procedimentos de guerra e destruição nazista explicita um passado que sobretudo envergonha a França e os franceses. O narrador (Modiano afinal de contas, mas um Modiano filtrado pela ficção) compara o destino dessa Dora Bruder com pessoas que ele conheceu e sobre as quais escreveu em seu primeiro romance, em 1965. Ele fala também ao menos de um dos aborrecimentos vividos por seu pai durante a ocupação nazista e de como aquele primeiro livro era uma tentativa de responder a uma inquietude, um desejo de vingança pelo que seu pai sofreu. Trata-se então de um livro que decantou lentamente, por trinta anos, numa espécie de síntese de seus procedimentos narrativos, de sua técnica. Haverá outros Modianos por aqui.
[início: 03/03/2015 - fim: 05/03/2015]
"Dora Bruder", Patrick Modiano, tradução de Márcia Cavalcanti Ribas Vieira, Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 143 págs., ISBN: 978-85-325-0889-8 [edição original: "Dora Bruder" (Paris: Éditions Gallimard) 1997]
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