Essa é uma edição muito especial de "Os mortos", conto de James Joyce que encerra a coletânea "Dublinenses", publicada originalmente em 1914 (muito embora esse conto tenha sido finalizado um bom tempo antes, quando Joyce vivia em Trieste, em 1907). Trata-se de uma edição bilíngue e a tradução é assinada por Tomaz Tadeu. Nela o leitor tem direito a um conjunto robusto de notas, que explicam as passagens mais enigmáticas do livro, uma breve introdução e um link de acesso a um mapa onde os locais mencionados no conto estão assinalados (esse mapa pode ser acessado aqui). O tradutor alerta na introdução que foi obrigado a fazer ligeiras adaptações devido a uma restrição editorial, que foi a necessidade de deixar os parágrafos traduzidos com o mesmo número de linhas dos respectivos parágrafos originais, de forma a permitir a leitura em paralelo dos dois. Não me pareceu nada que prejudique essencialmente o texto. Como sabe qualquer sujeito que tenha lido "Dublinenses", trata-se de uma das histórias mais poderosas e bem escritas de Joyce. O leitor acompanha uma festa de epifania, um jantar de gala, com direito a música e bebidas, que acontece num dia 06 de janeiro, provavelmente o de 1904. Quem dá a festa são as irmãs Morkan, Kate e Júlia, duas senhoras idosas. Joyce utilizou duas tias avós maternas suas na concepção destas personagens. O local da festa é o número 15 de um dos "Quays" da margem direita do rio Liffey, aquele conhecido por "Usher's Island". Hoje esse endereço fica exatamente defronte a entrada sul da James Joyce Bridge, uma ponte projetada pelo arquiteto Santiago Calatrava. Nesse endereço ainda existe uma casa que foi propriedade das duas tias avós de Joyce e onde deveria funcionar um museu ou casa de cultura (mas que não está regularmente aberto ao público, infelizmente). Por uma sorte dos diabos, através de um amigo irlandês, o John Murphy, conheci o atual proprietário da casa, um sujeito chamado Brendan Kilty, e a visitei numa noite de inverno em 2015 alternando Irish whiskey e Guinness (mas esta é outra história, que um dia conto com detalhes). Pois no conto de Joyce acompanhamos os frenéticos preparativos para a festa e logo uma elaborada apresentação de todos os personagens que chegam. Gabriel Conroy, sobrinho das anfitriãs, que fará um discurso de encerramento do jantar, é um dos últimos a chegar. Conroy é um sujeito afetado, que imagina serem superiores suas opiniões sobre a complexa relação política e social entre Irlanda e Inglaterra. Mas o que o leitor acompanha na história são as sucessivas mostras de quão errado está Conroy, não apenas sobre a situação de seu país (não exatamente um país, pois a Irlanda ainda estava sob administração inglesa naquela época), mas também sobre a forma como ele se relaciona com os demais e com sua mulher. Após a festa Conroy e a mulher rumam para a O'Connell Street, onde fica o hotel em que ficarão hospedados. Conroy parece animado e ansioso , mas quando confronta a tristeza que nota na mulher ela lhe conta que uma das músicas cantadas na festa a fez lembrar-se de um rapaz por quem foi apaixonada e que morreu numa noite fria como aquela. Conroy percebe de súbito a tolice de sua vaidade, do vazio das palavras que proferiu no discurso e do quão pouco conhece sua mulher e a si mesmo. Sua existência é patética, sabe ele agora. Que história dos diabos. Cabe dizer que registrei aqui recentemente uma outra tradução de "Os mortos", a do industrioso Caetano Galindo. E, por fim, digo que um leitor inspirado pelo livro ganhará muito se ouvir os seis podcasts reunidos no "Joyce's Dublin". Ouro puro e fino. Vale. Leia o Ulysses, leia James Joyce. Sláinte. Happy Bloomsday, to you and all.
[início: 11/05/2016 - fim: 16/06/2016]
"Os mortos", James Joyce, tradução de Tomaz Tadeu, Belo Horizonte: editora Autêntica, 1a. edição (2016), capa-dura 14,5x21,5 cm., 144 págs., ISBN: 978-85-8217-802-7 [edição original: edição original: Dubliners (London: Grant Richards) 1914]
6 comentários:
Olá Aguinaldo:
Acompanho frequentemente suas resenhas, sempre interessantes e bem elaboradas. Infelizmente, não tenho a sua voracidade na leitura, é incrível a quantidade de livros que você devora.
De todo modo, se não for incomodar, gostaria que conhecesse meu blog, que muito deve em inspiração ao seu. Comecei recentemente, depois de comprar um kindle. Não abandonei os livros em papel, utilizo ambas as formas em minhas leituras e, sempre que possível, comento os livros que li.
https://kindlebabel.wordpress.com/
Abraços.
Oi Paulo. Como vais? Vou sim acompanhar teu blog. Parabéns. Eu sempre digo que escrever é fácil (são milhares de livros editados por dia) e ler é difícil (sorte de quem tempo para ler um livro por semana). Desejo alegrias nas tuas leituras (já vi lá que há um pouco de tudo: ficção, ensaios, crônicas, quadrinhos, livros em inglês, francês, espanhol). Esse é o segredo. Diversificar. E sempre se divertir (vc acabou de ler o Mindlin, ele mostra o caminho que você e eu estamos a seguir). Abração.
Oi Aguinaldo. Muito obrigado por sua generosa resenha. Só uma observação: não fui obrigado a manter os parágrafos dos dois textos com o mesmo tamanho. Foi apenas uma escolha pessoal minha. Fiz o mesmo com a tradução de Bartleby também publicada pela mesma editora.
Oi Aguinaldo. Muito obrigado por sua generosa resenha. Só uma observação: não fui obrigado a manter os parágrafos dos dois textos com o mesmo tamanho. Foi apenas uma escolha pessoal minha. Fiz o mesmo com a tradução de Bartleby também publicada pela mesma editora.
Olá Tomaz, grato pela correção (eu entendi errado). Grande abraço e parabéns pelas traduções. Inté. Aguinaldo
Postar um comentário