O polonês Joseph Czapski foi pintor, escritor, crítico de artes, ativista político. Em setembro de 1939, data que marca o inicio da segunda grande guerra na Europa, engajado como oficial do exercito polonês, Czapski foi aprisionado pelos russos (a União Soviética e a Alemanha dividiram entre si o território polonês). Prisioneiro em um convento abandonado, a mais de 400 Km de Moscou, e demasiadamente debilitado para os trabalhos forçados aos quais estavam condenados todos os demais, ele fazia anotações durante o dia sobre assuntos de suas áreas de especialização, sobretudo pintura e literatura francesa. A cada noite, parte destas anotações eram pronunciadas como palestras a seus colegas oficiais poloneses. Cabe registrar que Czapski foi um dos poucos sobreviventes dos quase 25.000 oficiais prisioneiros dos russos que foram mortos em Katyn - um leitor curioso deveria ver o belo e terrível filme já feito sobre esse assunto. Junto com Czapski sobreviveu o manuscrito de suas conferências, que resta transcrito nesta edição da Âyiné. Naqueles dias terríveis, Czapski fala de Proust e sua obra, sem o auxilio de livros, anotações ou cousa que o valha, citando longos trechos do livro de memória (mas não aquela cara a Proust, a memória involuntária). Ele emula aos colegas prisioneiros o que sabe de livros que havia lido vinte anos antes. Um leitor já familiarizado com Proust apreciará o livro sem reservas, encontrará em Czapski um confrade de longe, alguém com quem compartilhar espanto e admiração (don Renato Cohen certamente deverá ler esse livro). As passagens que ele rememora, escolhe e conta para seus colegas prisioneiros são aquelas que encantam qualquer leitor (a morte da avó do narrador, o sofrimento de Swann, a decrepitude de Charlus, o chá e as madeleines, as recepções na mansão da duquesa de Guermantes, a mundanidade encarnada nos personagens), mas é a forma como elas brotam da memória de Czapski que guardam algo de mágico. A bem da verdade ele não se limita a contar as histórias dos livros de Proust. Czapski fala de sua vida, contrasta autor e obra com todos os movimentos artísticos, não apenas na literatura, mas também nas artes plásticas, na música, na dança, do final do século XIX e início do século. Fala dos autores russos, que ele conhecia bem, de política, de psicologia, de filosofia, de autores poloneses - a passagem sobre Conrad é soberba. Trata-se de um livro curto e potente. Essas edições da Âyiné são excelentes, porém só oferecem um aperitivo ao leitor, não saciam sua fome, deixam o sujeito nervoso ao terminar a leitura; e custam caro. Paciência. Escrevo este registro na véspera do dia que é dito do professor aqui no Brasil. Uma passagem de Czapski me fez pensar muito sobre essa data e a terrível situação em que esse desgraçado país se encontra, em que legiões de escravos mentais vagam e votam, deixando a impressão que sua grande maioria é incapaz de tomar decisões sensatas, de colaborar para construir um futuro minimamente digno. Paciência. Mas o que Czapski registra e me fez lembrar, numa lição, é que Proust jamais foi estritamente didático, engajado ou tendencioso em sua obra, jamais foi professoral. Para Proust é a forma, o compromisso estrito, rigoroso, absoluto, com as formas puras na arte, que conseguirá transmitir verdades ao leitor. É a vontade de saber e de compreender todos os sentimentos, todos os estados da alma e gestos dos homens, mesmo quando incompatíveis entre si, que poderá fazer com que possamos alcançar alguma verdadeira sabedoria. Proust nos obriga, a cada leitura, a uma revisão de toda nossa escala de valores, a despertar nossas frágeis faculdades de pensamento e sentimento. Efeitos assim não se alcançam com livros panfletários, ideologicamente comprometidos, que parecem ser o repasto da maioria dos - poucos - leitores contemporâneos. (Nem incluo aqui das informações que as pessoas compartilham nas redes sociais, quase sempre admiravelmente eivadas de vícios e mentiras). É mesmo tempo de reler Proust, de blindar-se da degradação, afastar-se dos miasmas, da abominável ignorância que grassa por este país. Vale!
Registro #1338 (crônicas e ensaios #233) [início 13/10/2018 - fim: 14/10/2018]
"Proust contra a degradação: Conferências no campo de Griazowietz", Joseph Czapski, tradução de Luciana Persice, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Das Andere #6),
1a. edição (2018), brochura 12x18 cm., 110 págs., ISBN:
978-85-92649-36-4 [edição original: Proust contre la déchéance: Conferences au camp de Griazowietz (Lausanne: Editions Noir sur Blanc) 1987 & 2011]
Um comentário:
Obrigado, mto bom abs M
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