domingo, 5 de julho de 2020

potnia

"Potnia" é um livro de poemas, e também o livro de um único poema: extenso, estirado, multifacetado, polimorfo. Segundo Leonardo Chioda, logo no início de seu livro, "Potnia (...) é um título de honra, usado pelos poetas para exaltar deusas e mulheres de extremo poder". Estamos no mundo das ideias de Robert Graves, no mundo da "Deusa branca", aquela que sob vários nomes fez-se cultuar por todo o orbe, aquela que tornou-se a linguagem poética de todos os mitos e religiões originais, todos os gênesis, todos os círculos de renascimento e morte. Após um prólogo/contrato entre narrador e leitor, e de três cantos evocativos, emerge o livro, dividido em três partes principais: "Épura & Medula", "Nume" e "Axioma". No primeiro conjunto encontramos 74 poemas, onde um narrador, desde a orla de um mundo novo que vai sendo gerado a cada verso, contempla a vastidão de um grande mar (o signo que domina "Potnia" é o da água, em todas suas possibilidades, como James Joyce já nos ensinou: sua universalidade, vastidão, inquietação, quietude, imperturbabilidade, virtudes curativas, infalibilidade como paradigma e modelo, onipresença, metamorfoses como vapor, névoa, nuvem, chuva, granizo, neve e granizo). São poemas complexos, que cobram tempo e esforço do leitor, onde as imagens evocadas importam mais do que se está sendo descrito (descrições que se desdobram, em parênteses, travessões e chaves em cascata). No segundo conjunto, "Nume", o narrador é Ulysses, que faz-se ao mar, navega de volta a sua Ítaca fundamental. A água continua soberana e as musas condutoras dos poemas são as deidades aquáticas: as sereias, as ondinas, as nereidas, as náiades. Elas fazem 35 conjurações, 35 encantos, que provocam em Ulysses o melhor entendimento de sua jornada. Somos lembrados que se o corpo é quase água, que é branca, transparente, o sangue que flui por nossas veias é salgado e rubro. O porto do narrador neste conjunto não é Ítaca, mas a poesia forte de João Cabral de Melo Neto, que oferece lições ao narrador e ao leitor. O último conjunto de poemas é "Axioma", um conjunto de 30 poemas curtos e três codas, que tratam de conceitos/palavras, potências mitológicas, oferecem um contraste entre a tradição e o cotidiano, demonstram a circularidade da vida, o eterno retorno de todos nós, seres em busca da palavra perfeita, da capacidade de expressão, de comunicação. "Potnia" não me parece um livro fácil, mas recompensa o leitor diligente com imagens, metáforas e histórias realmente potentes. Lembrei de coisas da Hilda Hilst (um reverdeço, uma vida espessa, um respeito por nossa capacidade de amar, mas talvez isso seja apenas devido a coincidência de ter relido ela recentemente, acontece), e também da Teogonia (a invenção de um mundo). Enfim, vamos a ver se encontro outras coisas de Leonardo Chioda. Vale! 
Registro #1550 (poesia #132) 
[início: 16/06/2020 - fim: 21/06/2020]
"Potnia", Leonardo Chioda, São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros (Selo Demônio Negro), 1a. edição (2016), brochura 16x23 cm., 198 págs., ISBN: 978-85-66423-29-7

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