quinta-feira, 13 de março de 2008

reparação

Em algum ponto destas férias santamariense fui a uma festa na casa de minha amiga Vera, tudo muito divertido. Em algum momento fiz uma aposta boba envolvendo quem era Jack Johnson (para mim era o boxeador que recebeu uma homenagem do meu guru Miles Davis; mas para Betina era um músico americano que esteve recentemente no Brasil). A ambiguidade depõe contra o cara que aceita então comprei e fiz chegar "Reparação" do Ian McEwan às mãos de Betina, leitora contumaz e apostadora sábia, para quem perdi a aposta (explicar porque uma conversa sobre música nos fez chegar a uma aposta envolvendo um livro é algo mais transcendental.) Mas vamos a este belo livro. Nunca havia lido nada dele, mas vez ou outra já havia lido sobre ele com bastante entusiasmo. O Daniel Piza escreveu em seu blog de final de ano que Reparação tinha sido uma de suas melhores leituras do ano anterior. Aquilo estava ainda fresco na lembrança. Para quem gosta de uma história bem contada difícil encontrar algo melhor. A história principal envolve a interpretação de uma moçinha de uma cena que ela vê de longe, envolvendo sua irmã mais velha e um rapaz simples que é protegido de seu pai. A influência óbvia de McEwan é "Pelos olhos de Maisie", belo livro que li já há tantos anos. Algo acontece no livro e o desfecho é habilmente postergado. Há também algo que me lembra o "Memórias de Brideshead" e pinceladas sobre o comportamento dos homens e mulheres com seus atos falhos. Mas claro, estamos falando de um livro, e um livro é apenas uma obra de arte, não é a vida mesmo, pulsante e real, por mais fiéis e detalhistas que pretendemos ser. Há um truque no livro. Você não vai se importar de saber isto se continuar a ler. Esta é apenas uma opinião minha. O truque envolve escrever todo o livro e ao final mudar o autor, pois na verdade ao chegarmos a quarta parte do livro percebemos que quem escreve as três partes do livro que acabamos de ler é uma personagem do autor McEwan. Aí ele fala um tanto sobre como se dá o processo literário de inventar e gerenciar personagens, que por vezes são hábeis demais para se confinarem nas páginas de um simples livro. Ele confessa que poderia fazer o que quiser, a solução atribuída a autora das três primeiras partes é só uma entre várias outras. Enfim, o ser humano é multifacetado à exaustão, tudo o que ele faz é real e só isto importa, milhares de livros podem ser escritos sobre a mesma história, mudando passagens, modificando escolhas, invertendo os papéis. Não há perda de unidade entre as partes (que de fato são bem distintas entre si). O livro mostra que literatura digna do nome é mais que contar uma história banal. Em um certo sentido o livro mostra como uma pessoa pode tentar expiar seus pecados através da arte (claro, é um personagem que faz isto, mas será que nós também não tentamos isto o tempo todo, através da arte, da paternidade, do bom mocismo, da humanidade). O que dizer da trama? Mais tarde, depois da tal cena inicial vista de longe ela testemunha um outro encontro entre sua irmã mais velha e o rapaz, desta vez na biblioteca da família e, ato contínuo, uma cena noturna envolvendo uma de suas primas. Há muitas peripécias a partir desta sucessão de testemunhos (pensando retrospectivamente os azares da vida também são assim, mesmo o inverossímel teima em acontecer de vez em quando, mesmo a mais cruel e ríspida das situações ficcionais não têm a exuberância da vida real de cada um de nós). Finda a primeira parte (que ocupa mais da metade do livro) passamos as duas seguintes: uma descrição dos horrores da segunda guerra mundial (particularmente do desastre inglês na batalha de Dunquerque, no norte francês) e o período dos bombardeios sobre a Londres conturbada dos primeiros anos da década de 1940. Vários dos personagens são novamente apresentados nestes caminhos posteriores e discutem as situações tensas e seminais descritas na primeira parte. Todos envelheceram e reinterpretam as situações do passado à luz de um mundo mais complexo e cruel que o anterior. Mas devemos expiar nossos pecados afinal. Para uma das personagens a única forma de entender o que se passou é escrever um livro sobre o assunto. Belo truque metalinguístico do autor, é este o livro que nós acabamos de ler. Mesmo a arte tem lá suas limitações. Comentários rápidos: um filme foi produzido baseado neste livro, mas não o vi ainda (pobre Santa Maria, sem cinema há 280 dias.); a orelha do livro é mais ou menos ridícula e dispensável, para dizer o mínimo; há muito sobre as diferenças de gênero tanto na vida privada quanto no mundo acadêmico da Inglaterra da primeira metade do século passado, interessante; vou tentar ler mais livros deste sujeito, diz a hagiografia que ele, ganhador de prêmios importantes como o Booker Prize de 1998, é um tanto mais pesado nos demais livros. Veremos.
"Reparação", Ian McEwan, tradução de Paulo Henriques Britto, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2002) brochura 14x21cm, 444 pág., ISBN: 978-85-329-0235-8

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