segunda-feira, 10 de novembro de 2008

no tribunal de meu pai

Nunca conheci ninguém que tenha lido um único conto que seja de Isaac Singer e não tenha sentido um assombro. Para mim ele só perde em genialidade e invenção ao velho e cansado Joyce, senhor das palavras e das conexões entre as coisas. Este sujeito tem uma imaginação dos diabos e sabe mesmo contar uma história. Lembro sempre do prazer de lê-lo, tantas vezes, em circunstâncias tão díspares, sempre me surpreendendo, sempre aprendendo um tanto. Neste "No tribunal de meu pai", somos apresentados a relatos auto-biográficos, memórias de infância, descrições de como funcionava o tribunal rabínico (Bet Din em iídiche) de uma rua, de uma uma Varsóvia, de uma Europa, nos poucos anos que antecederam os desastres da primeira grande guerra mundial. Aquele mundo não existe mais, foi destruído na grande guerra e também pelas leis seculares da Europa do pós-guerra e do novo recorte político-geográfico europeu. Na época das histórias contadas neste livro (primeiras duas décadas do século passado), em algumas regiões que hoje fazem parte da Alemanha, Polônia, Rússia e arredores, judeus hassídicos viviam seu dia a dia praticamente desconhecendo o que se passava na Europa não-judaica. Os judeus praticantes destes bairros recorriam aos milhares de rabinos que se distribuíam por cada rua de cada bairro de cada cidade onde a comunidade judaica se organizasse, para dirimir litígios, arbitrar disputas, resolver pendências, buscar conselhos, encontrar explicações, não apenas para assuntos etéreos e religiosos, como também para questões morais, éticas, financeiras, afetivas, contábeis, de herança. O pai de Singer era um dos homens pios encarregados desta função e que viviam apenas para o entendimento, a cultura, a reflexão e o aprimoramento das convicções religiosas cultivadas pelos judeus nos últimos três ou quatro milênios, desde as leis da fé mosaica terem sido recebidas por Moisés. Originalmente publicadas em jornais americanos, estas histórias foram publicadas em livro em 1966. Na maioria o que se lê são causos típicos enfrentados pelo pai do narrador e que este último insiste em acompanhar quase sempre furtivamente. Há também histórias de família, reflexões mais pessoais de um sujeito que já quer definir-se para o futuro e que antevê ser um futuro bastante árido e difícil. A prosa de Isaac Singer é sempre excelente, não há outro adjetivo. Ficamos presos em sua teia de escritor que conhece como poucos seu ofício e que sabe encantar o leitor. Ao mesmo tempo que são crônicas de uma época, os textos são construções bastante originais, que surpreendem pela riqueza e densidade. Mesmo nas descrições dos episódios mais terríveis e duros ele sabe encontrar o tom certo, o tom que ilumina cada um de nós, seres humanos capazes de acreditar que o homem é o mesmo quando perpetra os atos mais cruéis ou quando atinge as mais plenas epifanias. A edição inclui um razoável glossário dos termos em iídiche mais empregados pelo autor. Eis um livro que conta uma história de um mundo distante, mas que leva o leitor a pensar em seu próprio futuro e no futuro dos seus semelhantes.
"No tribunal de meu pai”, Isaac Bashevis Singer, tradução de Alexandre Hubner, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2008), brochura 14x21cm, 355 págs. ISBN: 978-85-359-1234-0

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