De Ingo Schulze só conhecia o bom "Celular", seu livro de contos publicado em 2007. "Adam e Evelyn" é um bom romance. A matriz é a história bíblica, claro, o título e os nomes dos personagens, não apenas dos dois protagonistas, Adam e Evelyn, mas de todos os demais, não disfarçam nada da alegoria inicial, mas a narrativa que brota das páginas é algo bem inventivo, autônomo da camisa de força bíblica. Schulze criou uma espécie de livro de estrada, um "road-book" outonal, que começa em meados de um agosto (o 19 de agosto de 1989) e termina no final de novembro deste mesmo ano, logo após a queda do Muro de Berlim. Adam e Evelyn são um casal de alemães orientais, sem filhos, ele com 33 anos e ela com 21, ele alfaiate e fotógrafo amador, ela garçonete. No 19 de agosto de 1989 Evelyn flagra seu marido fazendo sexo com uma de suas clientes (Lili, uma Lilith não tão devoradora com o original bíblico). Esta data é aquela em que a Hungria abriu suas fronteiras com a Áustria, decisão que permitiu que um grupo grande de alemães orientais (muitos em férias na Hungria naquele verão) fugissem para o ocidente, iniciando o processo que rapidamente culminou com a queda do Muro de Berlim, no dia 9 de novembro de 1989. Schulze faz seus personagens viajarem, da Alemanha Oriental para a Tchecoslováquia, de lá para a Hungria e logo para a Alemanha Ocidental. Não há um projeto, o que os move é antes a reação de cada um deles ao flagrante do adultério que a oportunidade de emigar ou fugir. Trata-se sim da história de um casal que precisa resolver uma questão doméstica, mas que estão no centro de um processo histórico tremendo, convulsivo, incontrolável, quase ininteligível para o indivíduo que o experimenta. Schulze é um mestre nos diálogos, faz com que a forma de se expressar de cada personagem seja única, vívida. A narrativa avança rapidamente, acompanhando os fatos reais da época, mas Schulze nos lembra que estamos lendo um livro de ficção, uma história, um romance, não um ensaio ou um registro de memórias. O paraíso perdido e o conquistado não são lugares tão distintos assim, nem tampouco a queda (ou a idéia de uma queda) um evento que de fato defina quem exatamente faz o bem ou o mal. Esse nosso mundo não é mesmo raso, nem novo. Eu poderia escrever um bocado sobre as boas alegorias que Schulze espalha pelo livro: a tartaruga, seu carro, um cubo mágico, as velhas fotografias, a camiseta com a bandeira do Brasil, a chave da casa/república, o processo de revelação fotográfica, mas isso deixo para um eventual leitor curioso, já falei demais por aqui (e gostei um bocado deste livro). Impossível ler este livro e não lembrar do maravilhoso "Roads to Berlin", do Cees Nooteboom, que também experimentou ao vivo a queda do Muro de Berlim. Vale.
"Adam e Evelyn", Ingo Schulze, tradução de Sergio Tellaroli, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2013), brochura 14x18,5 cm., 384 págs., ISBN: 978-85-405-0370-0 [edição original: Adam und Evelyn (Berlin: BV Bestseller Verlag GmbH) 2008]
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