Vamos a ver. A tetralogia napolitana de Elena Ferrante, iniciada com "A amiga genial" e continuada com "História do novo sobrenome" e "História de quem foge e de quem fica" se encerra com a "História da menina perdida". Esses quatro volumes formam um projeto literário ambicioso, muito bem escrito, e que granjeou sucesso com o público leitor e reconhecimento da crítica literária especializada, cousa não muito fácil de ser simultaneamente alcançada. Nas quase 500 páginas de "História da menina perdida" tudo que estava em suspense na narrativa resta resolvido, todas as circunstâncias e sucessos são explicados, ao leitor é oferecido um rosário de detalhes que contextualizam as transformações pelas quais passam as duas protagonistas da historia (Elena e Rafaella, Lenu e Lila) e todos os demais personagens relevantes. Há uma grande sacada na tal historia da menina perdida, porém mais não posso falar. Cabe ao leitor curioso procurar o volume (ou o google) e ler. Ferrante descreve os anos maturidade e velhice de Lenu e Lina. A Itália em transformação é confrontada com seus fantasmas (a corrupção entranhada no Estado, o terrorismo, as ações das brigadas vermelhas, a onipresença da máfia). O país purga (ou não purga) juridicamente esses crimes coletivos (mas apenas prendendo os suspeitos de sempre, livrando da cadeia os canalhas de sempre). O contraste entre os papeis dos homens e mulheres na sociedade italiana continua o tema relevante do livro. Não há explicitamente juízo de valor, mas uma exposição realista sobre a condição feminina na Itália da segunda metade do século XX. Elena e sua amiga Rafaella criam suas filhas pequenas, veem e interferem nas transformações pelas quais passam Itália e Nápoles, amigos e inimigos, os parentes e a natureza (até sobre um grande terremoto, o de 1980, a narradora tem tempo de falar na trama). O volume começa com a volta de Elena à Nápoles, em 1979, no início de sua escalada para tornar-se de fato uma escritora respeitada, cheia de compromissos. Segue até 2010, fechando o ciclo, quando as duas amigas alcançam seus 66 anos. É muita informação para se incluir em 500 páginas. Ao contrário do que faz Proust (oká, bem sei que é covardia
comparar o ciclo de Elena Ferrante com o ciclo de Marcel Proust, mas
releve um pouco a assimetria entre os dois e me acompanhe, se for o caso) Nesse ultimo volume a narrativa é
acelerada demais para o meu gosto. São tantos anos de
metamorfoses comprimidos, tantos causos e reviravoltas, tantas discussões, mudanças de opinião, surpresas e acasos, quanto a soma dos anos descritos nos três
primeiros volumes (que corresponde a mais ou menos trinta anos). Claro, o leitor, já enfeitiçado pela boa prosa de
Ferrante percorrerá alegremente os caminhos trilhados pelo livro, mas muito dificilmente terá a oportunidade absorver todo o processo de composição e invenção. E é exatamente essa experiência mágica o que Proust nos dá, ao nos impregnar lentamente com a passagem do tempo, preparando-nos nos dois volumes
finais de seu ciclo, para no sétimo e último nos forçar ao choque de revelações em cascata, quase simultaneamente, em uma espécie de câmara lenta. Não quero dizer com isso tudo que esse quarto volume de Elena Ferrante
seja ruim. Só não vejo a utilidade de detalhar tantas
irrelevâncias apenas para postergar um final digno para aquilo que realmente da força ao
livro, ou seja, o contínuo embate, rivalidade, competição e estranhamento mútuo
entre as duas amigas. Assim como todos nós, que vivemos nossas vidas apenas com entendimentos provisórios sobre as pessoas que amamos ou odiamos, compreendemos apenas parcialmente o caráter dos sujeitos com quem estudamos ou trabalhamos ao longo da vida, experimentamos apenas a camada mais superficial e mutante da persona daqueles que nos cercam e com os quais convivemos, Lenu e Lila talvez nunca tenham se conhecido completamente. É essa para mim a constatação final e cruel, porem necessária, do livro. Jamais entenderemos as motivações e atos de quem quer que seja, a menos que seja preferível para nos mesmos vivermos continuamente nos iludindo. E é essa exatamente a magia e a potência da vida, a magia e a potência da literatura, aquilo que nos faz continuar. Vale.
[início: 12/06/2017 - fim: 18/06/2017]
"História da menina perdida: maturidade, velhice", Elena Ferrante, tradução de Maurício Santana Dias, Rio de Janeiro: Editora Globo
(coleção Biblioteca Azul), 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 480
págs., ISBN: 978-85-250-6310-6 [edição original: Storia della bambina perduta (Roma: Edizione E/O) 2014]
2 comentários:
Também tive minha experiência nessa caminhada pela tetralogia da Ferrante. Não lembro se tive as emoções postas a revolta como nessas páginas: ora amando ora odiando as inconsequências de Lenu e Lina, ora rindo de suas facécias, ora desprezando seus atos mais espúrios, este foi o volume que mais gostei. Parece que na velhice purgamos de fato nossos erros e percebi um pouco disso nas palavras de Greco. Não é uma Santa Fé, cujos 65 dias em que fiquei embrenhado nO Tempo e O Vento do mestre Erico Veríssimo, mas vale!
Verdade. Abraços
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