Nunca havia lido nada de Doris Lessing. Quando ela ganhou o prêmio Nobel de literatura, há dez anos, cheguei a folhear vários livros dela, mas não acho que comprei algum (se os comprei eles perderam-se nos guardados). Como sou um senhor dono de gatos escalei-me para comprar "Sobre gatos" assim que entrou em pré-venda (foi o Daniel Dago quem fez o anúncio, com meses de antecedência). Essa edição brasileira é tradução da original inglesa, publicada em 2002, que inclui três conjuntos de histórias que foram publicadas inicialmente de forma independente, em 1967 (Gatos em particular), 1989 (Rufus, o sobrevivente) e 2000 (A velhice de El magnífico). As histórias de gatos do primeiro conjunto começam ainda na infância, na África, e são as mais violentas (não é fácil se acostumar, mesmo por meio da ficção, literariamente, com a realidade da vida selvagem e da vida prática de quem vive no campo). Mas logo há um salto, e Lessing começa a contar as aventuras de duas gatas dos tempos em que morava em Londres. O período não é identificado no livro, mas deve ser no início dos anos 1950, quando ela emigrou para lá. De resto há também uma citação sobre um grande nevoeiro, que pode ser o de 1952. Estas duas gatas, sem nome, apenas "a gata cinza" e "a gata preta", convivem, tem suas ninhadas, disputam território, atenção e preferência, ficam doentes e se salvam, caminham por uma Londres cheia de gatos, algo suburbana. Lessing ainda é uma dona de gatos aprendiz, não entende certas mudanças de humor das gatas, força sua humanidade à elas. A história de Rufus é de meados dos anos 1980. Neste intervalo Lessing certamente conviveu com vários outros gatos, não nominados e que não mereceram o registro em livro. Ela conta como a chegada de um gato maltrapilho, que virá a chamar-se Rufus e acabará conquistando sua atenção e abrigo. Os dois gatos oficiais naquele período, Charles e Butch, sabem bem que não perderão a posição que têm na casa, dominam o jovem e maltratado Rufus só com o olhar. Todavia Lessing parece se interessar especialmente pela inteligência e sabedoria felina dele, sujeito que deve ter tido toda sorte de aborrecimentos, porém que soube aprender como funcionam as engrenagens morais dos humanos e de como ganhar deles algum carinho (seu ronronar forçado e maroto é cousa de um ator nato). O ultimo episódio do livro trata dos anos finais de um gato especial dela, Butch, o mesmo da história anterior, apelidado "El magnifico". Quem convive com gatos sabe como cada um torna-se especialissimo a seu tempo, com suas manias, suas metamorfoses, seus nomes que variam e incorporam fragmentos da vida e humores de seus donos. Ela aceita os gatos e seu instinto, de um jeito que eu, dono de gatos de apartamento, que não experimentam a vida da ruas e seus perigos, jamais saberei. De qualquer forma Lessing mostra ser uma boa observadora, na medida em que seja possivel entender animais tão mutáveis como os gatos, seres que permitem infinitas variações em sua descrição. O curioso das histórias é que só há gatos em sua vida, apenas incidentalmente ela cita um "nós" e fala de quem vive com ela. Em algum momento ela fala de duas mulheres e que a ajudam a enterrar sobre a chuva uma ninhada indesejada (uma cena poderosa, que lembra obviamente aquela das três bruxas do inicio do Macbeth). Mas é só. Se eu soubesse há dezesseis anos que gostaria tanto de gatos, teria iniciado naquela época um diário das aventuras deles, algum tipo de registro, para não depender de minha estropiada memória ao falar deles. Paciência.
Registro #1211 (crônicas e ensaios #215)[Início: 24/08/2017 - fim: 28/08/2017]
"Sobre gatos", Doris Lessing, tradução de Julia Romeu, Belo Horizonte: Autêntica Editora,
1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 187 págs., ISBN:
978-85-513-0252-1 [edição original: On Cats (London: Flamingo / Harper Collins Publishers) 2002]
2 comentários:
Da Doris eu li um livro absurdamente intenso: O VERÃO ANTES DA QUEDA. Recomendo, Bucaneiro!
Vou procurar. Valeu a dica. Abraços
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