sábado, 30 de novembro de 2019

nada se vê

Há livros que nos encantam não apenas pelo conteúdo, informações e conceitos que por meio deles aprendemos. Há aqueles que oferecem uma forma diferente de entender as coisas, algo distinto do convencional, que aguça nossos sentidos, aprimoram nosso olhar. É o que Daniel Arasse alcança com este seu volume de ensaios sobre arte, sobre pintura, sobretudo. O formato do volume é simples. Toma-se uma composição e faz-se uma descrição detalhada dos símbolos, referências, contexto histórico e motivações daquela proposta plástica, daquele objeto artístico. Contudo, o que Arasse incorpora em suas reflexões é apenas uma fração do que pode-se definir como "complexos mecanismos mentais" que cada um de nós, os sujeitos que ficam defronte um quadro ou - ainda que menos efetivamente - defronte a uma reprodução de um quadro, experimenta, elabora e associa, sintetiza, compreende e arbitra. Os seis ensaios gravitam cinco pinturas icônicas e uma peça escultória, arte produzida nos séculos XV, XVI e XVII: Marte e Vênus surpreendidos por Vulcano (de Tintoretto, circa 1550); Anunciação (de Francesco del Cossa, circa 1470-72); Adoração dos Magos (de Bruegel, 1564); Maria Madalena com anjos (de Tilman Riemenschneider, 1490-92); Vênus de Urbino (de Ticiano, 1538) e As meninas (de Velázquez, 1656-59). Não me atrevo a tentar resumir aqui as notáveis reflexões de Daniel Arasse sobre cada uma destas pinturas (assim como de uma dezena de outras, de vários outros artistas, com as quais ele contrasta as seis peças principais). Foi antes o uso da linguagem, os truques retóricos, as figuras de linguagem, o ritmo e o colorido das frases de Arasse que me surpreenderam. Vivemos em uma época terrível, onde mesmo pessoas formalmente educadas são incapazes de descrever o que veem, inaptas para interpretar os mais simples dos códigos, refratárias a qualquer sutileza, ironia, jogo mental. O que Arasse muito necessariamente nos ensina é ser possível conciliar toda uma tradição de historiografia da arte com o mundo das relações coloquiais, ligeiras e efêmeras da modernidade. É tempo sim de voltar aos livros de arte, preparar-me para os ritos de passagem de ano, preparar as peregrinações pelos museus e galerias.  Vale! 
Registro #1472 (crônicas & ensaios #264) 
[início: 09/10/2019 - fim: 11/10/2019]
"Nada se vê: seis ensaios sobre pintura", Daniel Arasse, tradução de Camilda Boldrini e Daniel Lühmann, São Paulo: Editora 34, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 164 págs., ISBN: 978-85-7326-729-7 [edição original: On n'y voit rien: descriptions (Paris: Éditions Denoël) 2000, 2005]

Um comentário:

Paulo disse...

Adorei esse livro.