Depois de terminar o bom "Sobre os ossos dos mortos", resolvi conhecer outras cousas de Olga Tokarczuk, autora polonesa que recebeu o prêmio Nobel de literatura em 2018. Encontrei primeiro "Los errantes", publicado originalmente em polonês em 2008 e cuja tradução para o inglês recebeu, em 2018, o prestigioso prêmio Man Booker International. Trata-se de um romance extenso, caudaloso, de quase 400 páginas, porém fragmentado, composto de 116 histórias que conversam entre si, histórias quase sempre bem curtas, pois apenas onze delas têm mais de oito laudas (em média são 3,33 laudas por fragmento). As histórias brotam da experiência das viagens, do constante movimento (aquele que impede que o mal nos encontre). O título original (Bieguni) remete a uma antiga seita russa de sujeitos que viviam da bondade de estranhos (um tipo de monge). Outros temas são recorrentes: a anatomia (tanto dos homo sapiens quanto de outros seres vivos); a vida universitária e/ou participação em congressos científicos; as diferenças entre mulheres e homens; a passagem do tempo, que nos envelhece, levando-nos da vida à morte. As digressões da narradora de Tokarczuk lembram muito àquelas dos narradores de W.G. Sebald, num bom equilíbrio entre erudição, virtuosismo e descrições admiravelmente poéticas, imaginativas. O tema principal que citei acima é a psicologia das viagens, a forma como o viajante é afetado pelo distanciamento entre sua casa, sua cidade ou seu país e os lugares onde subitamente se percebe, num espanto. A narradora descreve três estágios que um viajante experimenta ao acordar em um lugar diferente: a suposição errada de estar em casa, a curiosidade ou confusão sobre onde ele se encontra, até por fim a iluminação ou sabedoria que advém da consciência de que nada importa, além da realidade do sujeito existir, estar ali, ao acordar. Em um dos fragmentos ela fala do deus Kairós, aquele do momento congelado, o momento oportuno (essa discussão faz parte de outra, maior e mais importante, onde se contrasta a ideia de tempo como um fluxo contínuo, como metaforicamente o fluxo de um rio, e o tempo discreto, que se pode medir, contar em fragmentos unitários). Esse livro foi escrito durante um período em que a autora recebeu bolsas de fundações holandesas e belgas, talvez por isso haja várias menções a cousas desta região na trama, muito embora a narradora faça registros de pesquisas em museus em Viena, Berlim, Dresdem, Leiden, Amsterdam, Riga, São Petersburgo e Filadélfia. A narradora conta várias histórias sobre gravadores; faz curtas biografias de vários anatomistas; descreve quartos de hotéis e salas de espera de aeroportos; canta certos feriados santos, que são diferentes na Europa continental, no sul do hemisfério, no leste europeu e na Escandinávia; fala da geografia sempre distinta dos lugares; da ubiquidade das massas de turistas; da presença grega que dá aos viventes contemporâneos da tradição greco-romana uma particular consciência do eu, em contraste com aspectos das culturas orientais. O livro inclui doze ilustrações de mapas antigos, algo impenetráveis, vagamente associados aos fragmentos mais longos da história (não há uma conexão direta, antes uma alusão, o que remete também aos textos de Sebald, que incluem fotografias e ilustrações). Algumas histórias se destacam pelo bizarro ou surpresa que provocam. Uma é a de uma mulher que escreve várias cartas ao imperador austríaco Francisco I, no século XVIII, reclamando o corpo de seu pai, um sujeito negro do norte da África que havia recebido uma refinada educação e que em vida foi servo da corte imperial, privando ali de muitas benesses, mas que após a morte acabou tendo seu corpo embalsamado e exposto à visitação pública por décadas (o leitor fica sem saber se o sujeito continua embalsamado, em algum museu europeu, ou se já foi enterrado dignamente, como a filha esperava). Outra história amalucada é a do translado do coração do compositor polonês Frédéric Chopin, da França para Varsóvia (à época sob domínio russo), para uma missa de réquiem e posterior funeral. Vinhetas extravagantes e curiosas como estas povoam o livro, formando um mosaico de cenas que lembram a atmosfera de sonho de filmes como "E la nave va". "Moby Dick", o romance de Melville, é várias vezes citados na trama. Mais não digo, pois não alcanço reproduzir o prazer que só a leitura dos 116 fragmentos poderá oferecer ao leitor. Enfim, impressionante a maestria desta autora. Certamente haverá outros Tokarczuk por aqui. Segue o baile. Vale!
Registro #1557 (romance #386)
[início: 01/08/2020 - fim: 06/08/2020]
"Los errantes", Olga Tokarczuk, tradução de Agata Orzeszek, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama
de Narrativas #1061), 1a. edição (2019), brochura 14x22 cm., 390 págs.,
ISBN: 978-84-339-8053-3 [edição original: Bieguni (Varsóvia: Wydawnictwo Literackie) 2007]
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