
Publicado originalmente em duas partes, em 1921 e 1922, ¨Sodoma e Gomorra¨ é o quarto dos volumes do ciclo "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust. Entre cada um dos três volumes anteriores ["
No caminho de Swann", "
À sombra das raparigas em flor", "
O caminho de Guermantes"] observamos um lapso temporal considerável, que correspondem a diferentes estágios da vida do narrador. Já de "O caminho de Guermantes" a "Sodoma e Gomorra" observamos uma continuidade na narrativa. Há trechos que antecipam e/ou fazem retrospectiva de acontecimentos distribuidos nos dois volumes. A transição não é temporal, mas antes na forma de entendimento das coisas do mundo. Este volume tem duas partes, bem diferentes em extensão. Na primeira parte, de umas cinquenta páginas poderosas, o narrador da história descreve sua descoberta da homossexualidade no barão de Charlus. Proust retoma os instantes imediatamente anteriores a seu encontro com Swann, o duque e a duquesa de Guermantes (a adorável sessão dos "sapatos vermelhos da duquesa"). Usando uma série de metáforas botânicas e entomológicas ele descreve como Charlus e Jupien se atraem, fazem a corte e seduzem um ao outro. O narrador entende, retrospectivamente, as atribulações pelas quais passou em todos os encontros que teve com o barão. A segunda parte de "Sodoma e Gomorra" é bem mais extensa, dez ou onze vezes maior que a primeira. Acompanhamos como o narrador alcança o ápice de sua vida mundana, ao ser recebido com reverência no círculo íntimo de relações dos aristocráticos Guermantes. Depois ele decide passar novamente suas férias de verão na região costeira de Balbec. Ali o narrador retoma seus encontros com a burguesia ascendente representada pelos Verdurin. Estes dois mundos (antes os habitantes destes dois mundos) irão estabelecer relações progressivamente mais complexas e reveladoras, tanto de suas virtudes e valores, quanto de suas limitações e defeitos. O tema principal deste volume é o comportamento sexual (notadamente o comportamento homossexual) de homens e mulheres, mas Proust também reflete com exuberância sobre o judaísmo e a política de seu tempo. De certa maneira o caso Dreyfus (um complicado problema que dividiu a sociedade francesa do final do século XIX e início do século XX, envolvendo militarismo, espionagem, política e xenofobismo) serve metaforicamente aos propósitos de Proust de descrever como os indivíduos se relacionam e se comportam em sociedade. O narrador também reencontra Albertine. Seu envolvimento com ela passa por várias metamorfoses, por ciúme e paixão, mas justamente quando ele decide dela se separar descobre que não pode viver sem ela (a paixão é destruidora). Os personagens que Proust cria são críveis, mutáveis e impressionantes, cada um a sua maneira. Nenhum personagem é absolutamente bom ou mau, esquemático ou plano. Apesar da violência com que somos apresentados ao que há de pior no comportamento humano (este deve ser um dos livros menos condescendentes com a espécie humana que já li) depreendemos que até isso é irrelevante, o ser humano é mesmo uma besta capaz dos crimes mais hediondos, das desculpas morais mais canhestras. A nenhum leitor é dada a ventura (ou escusa) de permanecer ingênuo após ler todo o ciclo. O julgamento moral que experimentamos tem a nós mesmos como juiz, jurí, promotor, carcereiro e carrasco. As passagens mais torpes ainda estão por vir, nos três volumes restantes do ciclo. Como já registrei em outras resenhas esta reedição da Globo da tradução original é cheia de mimos para o leitor (prefácio, resumo, caudalosas notas, posfácio), mas nota-se que desta vez o trabalho foi feito sem apuro ou revisão adequada. A paginação do resumo está totalmente errada, o que o torna inútil. Talvez seja a constatação de erros como este (há vários outros, de grafia, menos importantes, mas que poderiam ser evitados) que tenha feito a editora globo interromper a seqüência da reedição. Paciência. Vou reler meus volumes antigos. Ainda há tempo de sobra neste ano.
[início 01/05/2011 - fim 11/07/2011]"O caminho de Guermantes: Sodoma e Gomorra (vol.4)", Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, São Paulo: editora Globo, 3a. edição, revista (2008), brochura 16x23 cm, 637 págs. ISBN: 978-85-250-4228-6 [edição original: Sodome et Gomorrhe (éditions Gallimard), 1919-1922]