Comecei a ler esse "Lições de literatura" quando estava num aeroporto e encontrei por acaso dois professores de literatura e tradutores que respeito muito: os industriosos Caetano Galindo e Sandra Stroparo (e eu tinha acabado de me despedir de um outro amigo querido, o Samuca Pessoa, ou seja, estava realmente feliz naquele dia especial). Assim como no "Lições de literatura russa" esse volume de lições de literatura (inglesa, francesa e alemã) é resultado de um trabalho de compilação e organização feito por Fredson Bowers a partir das notas de aula que Vladimir Nabokov produziu em sua prática como professor universitário nas décadas de 1940 e 1950 no Wellesley College (em Massachusetts) e na Cornell University (em Ithaca, New York). Nabokov afirma que nos vinte anos de docência escreveu aproximadamente cem lições - cerca de 2 mil páginas - sobre os sete autores poderosos reunidos nesse volume (não incluindo as outras cem lições sobre os autores russos). Nabokov fala dos romancistas sobretudo através das obras deles, que eram lidas com os alunos em traduções para o inglês. Para discutir as obras de Jane Austen, Charles Dickens, Gustave Flaubert, Robert Louis Stevenson, Marcel Proust, Franz Kafka e James Joyce ele usa, respectivamente, os livros Mansfield Park, A casa soturna, Madame Bovary, O médico e o monstro, No caminho de Swann, A metamorfose e Ulysses. O método de ensino de Nabokov implicava em oferecer aos alunos notas que seguem o desenrolar da ação de cada livro, através das quais discutia os temas, estilos, técnicas e influências, acrescentando suas opiniões, citações de comentadores das mesmas obras (normalmente severamente criticados por ele), diagramas, ilustrações e mapas (as informações visuais, a capacidade de percepção visual das narrativas, era parte importante de seu método). Os alunos acompanhavam as aulas com os livros abertos à sua frente, de forma a ser orientados a atentar para os trechos do texto que eram lidos/citados por Nabokov. As aulas são realmente boas. Perdi um bocado das duas primeiras (sobre Jane Austen e Charles Dickens) pois nunca li Mansfield Park ou A casa soturna. As demais consegui acompanhar muito bem. Em geral o leitor logo pensa em reler os livros sob a perspectiva oferecida por Nabokov. As histórias são analisados em detalhe, em termos de suas estruturas, movimentos da trama, linhas temáticas, estilo, poesia, repetições, truques, simbolismos e descrição dos personagens. Nabokov discute como deve ter sido executado o projeto artístico de cada escritor, como se deu a composição dos livros, quanto tempo foi dedicado a cada um deles. Ele enfatiza a importância dos detalhes na construção de uma obra de arte verdadeira. Ao mesmo tempo ele não poupa críticas à abordagens psicológicas, freudianas, assim como à contextualização política ou econômica da época da publicação das obras, concentrando-se sempre nos elementos puramente artísticos dos livros. Nabokov adverte várias vezes que a pior maneira de se ler um livro é se misturar, se identificar de forma infantil com os personagens, como se eles fossem pessoas de carne e osso. Os personagens devem ser aceitos como foram inventados pelo autor. Para ele os grandes livros são fruto de estilo e estrutura, não reservatórios de grandes idéias ou projetos de educação em massa, ou seja, a literatura de verdade, forte, é a literatura dos sentidos, literatura das idéias por si só não produz arte verdadeira, é propaganda, geralmente propaganda ruim. O leitor deve aprender a ignorar os pontos fracos dos livros, os clichês literários, as fraquezas do autor e seus eventuais gestos teatrais, desde que haja no livro tenha afinal qualidades estruturais suficientes. Gostei muito das lições sobre Madame Bovary e A metamorfose. O livro de Flaubert é analisado cena a cena, as descrições são maravilhosas. Já o livro de Kafka é estudado com a ajuda de diagramas sobre o besouro (que Nabokov, também um respeitado entomologista, faz questão de identificar no lugar da barata que muitos preferem acreditar ser o resultado final da história de metamorfose contada por Kafka) e sobre o apartamento, a disposição das peças do apartamento da família de Gregor Samsa. A lição sobre Proust é relativamente curta. Apesar dele ser francamente favorável ao poder de encantamento do livro não se atreve a detalhar todo o ciclo, concentrando-se em como o primeiro volume (No caminho de Swann) prepara o leitor para a experiência total que terá ao chegar ao final. Na lição sobre O médico e o monstro utiliza várias ilustrações para explicar como Henry Jeckyl e Edward Hyde se relacionam. Neste capítulo ele cede a suas restrições de dar valor às questões de interesse humano ao falar de livros e cita as circunstâncias da morte de Stevenson, associando-as às transformações dos personagens do livro. A lição final, sobre o Ulysses de James Joyce, é a maior do livro, cobre quase um quarto dele. Nabokov discute cada um dos dezoito capítulos do livro em detalhes, arrisca solucionar um dos grandes enigmas do Ulysses, identificando o homem de capa de chuva marrom M'Intosh como o próprio autor, James Joyce (trata-se de uma aposta arriscada), parece divertir-se ao mostrar como opera a engenhosidade de Joyce. Ele é francamente refratário a associações simplistas com a Odisséia de Homero ou às interpretações algo freudianas, ou sentimentais, de exegetas de Joyce (Richard Kain, Stuart Gilbert, Harry Levin). A edição inclui mimos: uma introdução assinada por John Updike, um curto prefácio do editor, Fredson Bowers, e dois ensaios curtos assinados por Nabokov (A arte da literatura e o bom senso - um texto longo sobre o ofício de escrever, da experiência de tornar-se um escritor e L'envoi - um texto de encerramento antes das avaliações finais do curso). Essa edição inclui algumas ilustrações e diagramas produzidos por Nabokov, porém meu exemplar do original (editado em 1980) inclui um número muito maior. Paciência. No L'envoi ele diz: "Durante o curso, tentei revelar o mecanismo desses maravilhosos brinquedos - obras primas literárias. Procurei fazer de vocês bons leitores, que leem livros não com o objetivo pueril de se identificarem com os personagens, não com o objetivo juvenil de aprender a viver, e não com o objetivo acadêmico de se permitir generalizações. Tentei ensiná-los a ler livros pela prazer de conhecer suas formas, suas visões, sua arte". Sim, é isso que todo leitor deve buscar, sempre. Vale.
[início: 22/10/2015 - fim: 26/12/2015]
[início: 22/10/2015 - fim: 26/12/2015]
"Lições de literatura", Vladimir Nabokov, tradução de Jorio Dauster, edição/introdução/notas de Fredson Bowers, São Paulo: Três estrelas, 1a. edição (2015), brochura 16x23 cm., 464 págs., ISBN: 978-85-68493-18-2 [edição original: Lectures on Literature (New York: Harcourt Brace Jovanovich / Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company) 1980]
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